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Mulheres cordelistas se reúnem em campanha contra o machismo
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Mulheres cordelistas se reúnem em campanha contra o machismo

Movimento de mulheres cordelistas contra o machismo promove campanha para transformação no gênero literário após ataque virtual
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Mulheres cordelistas se unem contra o machismo. Apoiadores estão levantando a tag #cordelsemmachismo em suas redes sociais. (Foto: Regina Drozina/ Divulgação)
Foto: Regina Drozina/ Divulgação Mulheres cordelistas se unem contra o machismo. Apoiadores estão levantando a tag #cordelsemmachismo em suas redes sociais.

"Escrevi sobre mulher/ O meu tema preferido/ Compreenda quem quiser/ Pois meu verso é atrevido/ Denuncio a violência/ Dou nome a incompetência/ Quero o machismo banido". Nos idos de 2001, a mestre do cordel juazeirense Salete Maria enunciou: mulher, é cordelista porque aprendeu a ler escutando a avó recitar as histórias do sertão de Lampião e Maria Bonita. Na tradição oral, múltiplas são as mulheres que costuram rimas e causos para manter viva a sabedoria popular. São cordelistas, xilogravuristas, repentistas, poetas e cantadoras — figuras femininas que integram a ampla historiografia da literatura de cordel no Brasil, mas que continuam a sofrer uma intensa marginalização machista e patriarcal no gênero literário.

No último 27 de junho, a poeta cordelista, pedagoga e radialista sergipana Izabel Nascimento participou do III Encontro de Cordelistas da Paraíba. No painel virtual "O cordel como ferramenta de transformação social", a também presidente fundadora da Academia Sergipana de Cordel apresentou um resgate histórico para denunciar os profundos impactos do patriarcado no universo do cordel. O incômodo de diversos cordelistas homens na plateia tornou-se evidente, mas foi nas redes sociais que artista recebeu ataques, julgamentos e questionamentos sobre sua atuação no gênero. Nasceu, após o episódio machista, a campanha #cordelsemmachismo.

"O machismo é uma realidade que também se expressa fortemente dentro do cordel. Há algumas semanas, o cordel brasileiro tem vivenciado um marco histórico a partir do Movimento de Mulheres Cordelistas Contra o Machismo. Há muito tempo nós mulheres passamos por situações em que somos depreciadas, excluídas, boicotadas, assediadas. Estas ações ocorrem em maior ou menor grau. Importante mencionar que o machismo no cordel está além do comportamento dos poetas em relação às mulheres. Ele se expressa também na própria literatura, que registra e perpetua esta visão", pontua Izabel. Com mais de 100 títulos publicados e 30 anos de trajetória no cordel, a poeta defende que campanhas por diversas vozes provocam o debate, apresentam pautas e promovem transformação.

Nas redes sociais, a campanha #cordelsemmachismo já conta com apoio de mais de 70 grupos e aproximadamente 1.700 assinaturas em uma petição virtual disponibilizada no perfil @cordelsemmachismo no Instagram. "O machismo no cordel se manifesta de muitas formas, algumas bem sutis, disfarçadas de falas elogiosas — por exemplo, termos que ouvir ainda no século XXI dizerem que 'somos as flores que perfumam e embelezam o cenário da poesia', ou quando uma mulher é elogiada em detrimento/diminuição de outras. Deixando claro que não há problema em querer ser flor, o problema é limitar nossa atuação a isto, e reforçar a objetificação da mulher", explicita a poeta cordelista cearense Julie Oliveira. Com 17 anos de atuação no gênero e nove obras publicadas, Julie alerta que as cordelistas são muitas, "mas só possível saber quantas se houver luz sob esses trabalhos".

"A mulher sempre esteve no cordel, nem sempre como gostaríamos, mas estávamos lá. Na grande maioria das vezes nas temáticas, e em diversas abordagens, abordagens essas em sua maioria estereotipadas, sendo apresentadas nos clichês de mãe perfeita, companheira fiel, puta, solteirona despeitada, fogosa e sensível; noutras, assexuada e interesseira. Esses e vários conceitos machistas sempre estiveram presentes não apenas no cordel, mas em toda a literatura universal, como uma tentativa de repressão, rotulação, dominação, domesticação e diminuição do feminino", complementa a fundadora do Coletivo Cordel de Mulher.

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Gisa Carvalho, professora da Universidade Federal de Ouro Preto e pesquisadora das relações de memória produzidas pelas mulheres no cordel contemporâneo, explica que a partir de 1970 registraram-se manifestações de autoria assumidamente feminina na historiografia do cordel brasileiro, "mas a gente tem uma referência forte anterior que é a cordelista Maria das Neves Batista Pimentel. Segunda Fanka Santos, pesquisadora conceituada e fundamental para entender as questões de gênero no cordel, o trabalho da Maria das Neves data os anos 1930, só que ela assinava com o nome do marido dela, Altino Alagoano". Para Gisa, o movimento #cordelsemmachismo é urgente também para conhecermos essas histórias continuamente invisibilizadas. "As mulheres cordelistas precisam ser vistas e ouvidas. Não temos condições de esperar que os homens abram esse espaço, eles não vão abrir. Nós estamos organizadas porque a estratégia é construir a própria visibilidade".

"Um dos pontos mais importantes que apresentamos na campanha é o que afirma que nós, mulheres cordelistas, não queremos voz! Por mais óbvio que pareça dizer, nós temos voz! O que nos falta é escuta", defende Izabel. Julie complementa: "Mas não é qualquer escuta, é uma escuta atenta, real. As mulheres precisam ser ouvidas, ouvidas de verdade. A partir disso, a gente estabelece um diálogo de qualidade e propositivo. Essas novas estruturas são criadas diariamente, é um trabalho que precisa de todas e todos".

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