Logo O POVO+
Por que ler os clássicos?
Vida & Arte

Por que ler os clássicos?

Obras literárias clássicas movem estudos, interpretações e pesquisas, além do prazer da leitura em si.
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Interna vida DOM (Foto: David Lima)
Foto: David Lima Interna vida DOM

O questionamento é do escritor italiano Italo Calvino (1923-1985). "Por que ler os clássicos?". Em ensaio homônimo redigido em 1981, Calvino elabora 14 propostas sobre as grandes narrativas da literatura mundial: se "é preciso que a obra crie ela própria a sua posteridade", nas palavras do francês Marcel Proust, o italiano define um clássico como "um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer". Desde o poema épico "Ilíada", criado pelo grego Homero no século 8 a.C., obras literárias atravessam o tempo e se desdobram na história; versam sobre sociedades e descrevem dilemas humanos tão comuns a incontáveis gerações. Hoje, o Vida&Arte passeia com Calvino por enredos, personagens e autores que ocultam-se nas dobras da memória e permanecem vivos, muito vivos, no imaginário coletivo e individual.

"Um clássico da literatura não deixa de ser testemunho de sua época, ao mesmo tempo em que continua repondo questões humanas e sociais para sua posteridade. Essa possibilidade de durar, no entanto, não tem a ver apenas com as obras, mas também com os grupos e as sociedades que as mantêm vivas pela leitura e o estudo", pontua Irenísia Torres de Oliveira, professora do Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará. "Assim, o que é clássico, além do conteúdo estético e humano das obras, é definido também pelos valores de quem tem poder de escolher o que é de seu interesse".

Dante Alighieri, William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Fiódor Dostoiévski, Albert Camus… Na complexa trama socioeconômica de poderes, são notórios recortes geográficos, raciais e de gênero na eleição dos clássicos. Para Irenísia, neste sentido, a pluralidade de olhares sobre a literatura é fundamental. "Esses novos olhares dependem de mudanças nos grupos e sociedades que leem e decidem sobre o que é de seu interesse. Quanto mais democrática for a sociedade, mais amplo, variado e complexo será o processo de escolha do que continuaremos a ler no presente e indicaremos ao futuro. Então não é só uma questão a ser resolvida no âmbito da crítica ou da teoria literária. Aqueles setores da sociedade — mulheres, negros, indígenas, não europeus e outros — que não eram chamados a escolher o que interessava manter vivo, agora querem falar e decidir também. Mas acredito que a possibilidade desses setores de falar sobre clássicos, entre outros assuntos, depende de sua mudança de posição na sociedade e no mundo. Ou seja, depende de construirmos verdadeiramente sociedades mais democráticas, igualitárias e que prezem as diferenças", complementa a professora.

"O interesse pelas obras clássicas depende de uma nova leitura também, da descoberta da possibilidade de encontrar nelas problemas que nos dizem respeito. Se a leitura for um ato de submissão, no sentido de que seja feita para reverenciar o grande autor do passado, ela contribui para a morte da obra. Um clássico, para estar vivo, depende de se comunicar visceralmente e, mesmo do passado, propor questões contemporâneas", defende Irenísia. Nas palavras de Calvino, "se a centelha não se dá, nada feito: os clássicos não são lidos por dever ou por respeito, mas só por amor".

O amor pela delicada costura do tempo que a literatura cose foi o que aproximou Alessandra Jarreta das obras clássicas. Mediadora dos clubes literários Leia Mulheres, Leituras Feministas, Clube do Quadrinho, Releituras Mágicas e Lendo Clássicos, Alessandra se interessou por obras consagradas ainda durante a infância: no período escolar, induzida pela mãe, leu "O Principe e o Mendigo" de Mark Twain em uma tarde. "Comecei a ler depois do almoço, vi a noite cair e nem percebi o tempo passar. Talvez tenha sido a minha primeira experiência de perder o medo de livros", relembra. Entre os clássicos marcantes, "Frankenstein" de Mary Shelley se destaca pela autoria feminina em um cenário literário notoriamente machista: "Primeira obra de ficção científica, o livro foi também o primeiro lido no Leia Mulheres em Fortaleza".

Atual leitura do clube Lendo Clássicos, "Os Miseráveis", de Victor Hugo, transformou a relação de Alessandra com o mundo e a sociedade. "Outra obra que me marcou, indiscutivelmente um clássico, foi 'Quarto de Despejo' de Carolina Maria de Jesus. Foi um soco no estômago, você lê e começa a enlouquecer com as injustiças". No esteio de obras profundamente sociais, a mediadora literária elenca títulos como "Um defeito de cor", de Ana Maria Gonçalves. "É um romance histórico poderosíssimo que nos traz muitos questionamentos, mas muitas vezes não é visto como um clássico porque foi escrito por uma mulher viva. O que faz um livro ser clássico? É o tempo que ele foi publicado? É o livro escolhido por um certo grupo privilegiado de pessoas? Não há uma resposta no dicionário, mas a gente precisa diversificar nossas leituras justamente por isso", pontua.

Para Alessandra, o primeiro passo nessa construção do que é clássico é tornar essas obras mais acessíveis — e perder o medo de ler, debater e se aproximar dessas leituras é imprescindível. "Não tem motivos para temer livros. São só livros", ri. "Pra mim, os clubes de leitura foram muito importantes. Quando você conversa com outras pessoas, o debate enriquece a experiência. Às vezes, um boa tradução desperta interesse também", sugere.

Em julho de 2010, a editora paulista Companhia das Letras firmou parceria com a renomada casa editorial britânica Penguin para criar a Penguin Companhia, selo responsável pela publicação de grandes títulos nacionais e internacionais a preços acessíveis. Com mais de 150 obras no catálogo, a Penguin Companhia completa 10 anos como referência em tradução — a exemplo, as de William Shakespeare por José Francisco Botelho e Lawrence Flores Pereira. Segundo Luara França, editora no grupo e mestre em História Social, o aparato crítico dos tradutores é demanda do público brasileiro. "Além das obras fora de catálogo, os leitores nos pedem livros clássicos com tradução e notas da Penguin que ajudam na leitura, principalmente textos mais antigos como os de Platão".

Entre notas de rodapé, introdução, posfácio e outros materiais de apoio, o selo Penguin Companhia proporciona ao leitor uma dupla experiência — ler como fruição e também como pesquisa histórica. "Procuramos inserir o leitor tanto no contexto em que a obra foi escrita, quanto na recepção dessa obra ao longo do tempo. Os textos de apoio ajudam a entender, por exemplo, como um libertino como Marquês de Sade se tornou um clássico atual; com essa obra escrita em pergaminhos e enrolada dentro dos tijolos da prisão da Bastilha. Buscamos também sempre especialistas brasileiros para escrever sobre a obra no País", destaca Luara. "Nós sempre ressaltamos que os livros da Penguin não são para o público acadêmico: é importante sabermos que esses grandes clássicos foram feitos para fruição também. Eles são incríveis, vamos debater e conversar sobre os livros muito profundamente por anos e anos, mas também lemos para aproveitar", complementa.

"Não se pense que os clássicos devem ser lidos porque 'servem' para qualquer coisa. A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos", continua Calvino. E encerra, agridoce — "Se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran: 'Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. 'Para que lhe servirá?', perguntaram-lhe. 'Para aprender esta ária antes de morrer'".

 

Vida&Arte indica:

Os Miseráveis, Victor Hugo

Triste Fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto

Dom Quixote, Miguel de Cervantes

Guerra e Paz, Liev Tolstói

Orgulho e Preconceito, Jane Austen

Frankstein, Mary Shelley

Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa

A Falência, Júlia Lopes de Almeida

Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez

Um Defeito de Cor, Ana Maria Gonçalves

 

O que você achou desse conteúdo?