Em 15 de outubro de 2019, a Secretaria da Cultura do Ceará anunciava o XIV Edital Ceará Cinema e Vídeo, com investimento previsto de R$ 8,2 milhões. O lançamento da chamada veio na esteira de um ano exitoso para a produção do Estado e de uma efusiva fala pública do governador Camilo Santana proferida semanas antes, na abertura do 29º Cine Ceará, na qual ele se comprometeu a dobrar os recursos destinados ao audiovisual no segundo mandato. Um ano depois, a execução do edital segue parada, contando com atrasos inclusive anteriores à pandemia. O Vida&Arte contactou agentes, entidades do setor e a própria Secult para elucidar a situação da chamada.
O Edital Ceará Cinema e Vídeo é o principal fomento para o setor audiovisual em nível estadual, investindo não somente na produção de filmes em diferentes formatos, mas também no desenvolvimento de roteiros, manutenção de cineclubes e ações formativas. Entre pessoas inscritas na edição mais recente, o sentimento é de descaso e incerteza.
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"Não recebi nenhum retorno, nunca. Nunca me mandaram uma mensagem, um e-mail. É de um descaso tremendo com a gente", divide uma diretora e atriz que prefere não ser identificada. A ausência de diálogo direto é reforçada pela produtora cultural e cineclubista Emilly Guilherme. "Tem sempre uma rede de contatos que acabam sabendo das decisões que acontecem dentro da Secult e passam. É sempre assim, por contatos e trocas de informações, nunca por um canal oficial", divide. A partir desta ausência, agentes do setor relatam desgaste em ter que cobrar informações junto à secretaria que, quando chegam, soam "evasivas".
A Câmara Setorial do Audiovisual (CSA) - órgão consultivo da Agência de Desenvolvimento do Estado do Ceará (Adece), ligada à Secretaria do Desenvolvimento Econômico e Trabalho - aponta que o caso do atual edital "preocupa e vem sendo pauta" de encontros da entidade.
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A Câmara considera "muito desgastante" que se perca mais tempo "correndo atrás de prejuízos e faltas do que na construção de novas e produtivas demandas", mas não considera o fato como falta de diálogo com a pasta. "O que existe é um imenso descompasso entre o texto de que somos um Estado que investe forte no Audiovisual e o que realmente se realiza, e isso é uma fragilidade da política do Estado em relação ao setor para além da Secult", avalia a entidade.
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Um exemplo flagrante: após cobranças de proponentes, a Secult informou recentemente não ter contratado ainda os pareceristas, responsáveis pela análise e seleção dos projetos - fase prevista no cronograma para execução entre 21 de janeiro e 20 de março de 2020. Apesar de não ser um passo do processo seletivo em si, tal contratação é essencial para o bom andamento da chamada. A produtora Amanda Pontes ressalta que o processo dessa contratação, geralmente "burocrático e demorado", deve ser empreendido com antecedência. "Teria que estar sendo tocado idealmente ainda na época das inscrições", aponta.
Outro exemplo do descompasso entre discurso e prática, aponta a CSA, é a incapacidade de operacionalização dos processos. "Mesmo agora, depois da realização do primeiro concurso em mais de 50 anos, a Secretaria ainda não tem estrutura suficiente para gerir a contento um setor que se desenvolveu muito nos últimos anos", avalia a entidade. "Há deficiências estruturais sim, profissionais sobrecarregados, burocracias, mas o ponto da não contratação de pareceristas levanta dúvidas políticas mesmo, sobre as prioridades da gestão", avança um produtor que prefere não se identificar.
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De acordo com as fontes ouvidas, a secretaria apontou que período pandêmico impactou o andamento do edital. "A Secult informa que a pandemia, e seus decretos de contingenciamentos, impossibilitou a contratação dos pareceristas que, no nosso entender, já estava com execução atrasada, fora de tempo", avalia a CSA. Amanda reforça o entendimento. "Independentemente do quadro imposto pela Covid-19, ações básicas - como contratação dos pareceristas - já teriam que ter sido executadas desde janeiro, período anterior ao decreto de isolamento social", considera.
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Se as datas previstas no cronograma tivessem sido seguidas, somente os últimos dias da análise e seleção de projetos e as fases finais teriam sido de fato impactadas pela pandemia - o primeiro decreto governamental referente ao coronavírus foi publicado em 19 de março e o estado de calamidade pública foi aprovado na Assembleia Legislativa no início de abril. "Se o processo tivesse andado conforme os prazos acordados, mesmo tendo sido impactado pela pandemia, estaríamos agora podendo retomar vários projetos que contariam com esse recursos", acredita Amanda Pontes.
Respostas da pasta
O Vida&Arte procurou a Secretaria da Cultura do Ceará com perguntas referentes ao edital. A pasta encaminhou respostas aos questionamentos feitos, que podem ser conferidas na íntegra abaixo:
O POVO - Quando do lançamento do edital Ceará Cinema e Vídeo no ano passado, os aprovados no concurso da Secult ainda não haviam sido integrados ao quadro da pasta. A convocação veio em novembro de 2019 e a nomeação, em fevereiro deste ano. A Secult julga que o número de pessoas nos processos da pasta é suficiente para atendê-los?
Secult - Sim. Os novos servidores se somarão aos colaboradores que já atuam nesses processos, compondo uma equipe experiente e com bastante conhecimento técnico específico.
O POVO - No ano passado, também quando do lançamento do edital, os pagamentos da chamada anterior, de 2016, ainda estavam em aberto. Como está essa situação agora?
Secult - Todos projetos selecionados receberam a primeira parcela, em torno de 80% do valor apoiado e a segunda parcela é paga na medida da aprovação da prestação de contas da parcela anterior.
O POVO - Em que situação exatamente se encontra o XIV Edital Ceará Cinema e Vídeo hoje? Que fases foram executadas após o término das inscrições? Pareceristas foram contratados?
Secult - A sua execução foi retomada e se encontra em fase de contratação dos pareceristas técnicos. Após a contratação será publicado resultado preliminar e iniciada a seleção técnica dos projetos. Em março o seu trâmite foi interrompido em razão de medidas de caráter geral do Governo do Estado de contenção de gastos para o enfrentamento da pandemia de Covid-19.
O POVO - Quais as justificativas para que passos do cronograma - parte deles previstos para o início do ano, antes do período da pandemia - não terem sido executados no tempo esperado?
Secult - No fim de 2019, em atendimento a uma carta coletiva assinada por vários realizadores e representantes de entidades ligadas ao setor, a Secult prorrogou o prazo de inscrições para o Edital, o que gerou adiamento de todas as fases do processo. Na ocasião, houve alerta para este fato, e a opção do segmento por seguir com essa decisão.
O POVO - Como a Secult responde às queixas feitas por agentes da classe audiovisual sobre falta de diálogo direto sobre a situação do edital e retornos evasivos por parte da pasta?
Secult - Todas as dúvidas e encaminhamentos dirigidos para os canais oficiais da Secult são respondidos e pelo e-mail do edital indicado no site. Da mesma forma, todas as solicitações e convites formais para reuniões foram e são sempre aceitos.
O POVO - O que será feito do XIV Edital Ceará Cinema e Vídeo a partir de agora? Pretende-se executá-lo? De que forma? Até quando?
Secult - Sim. A seleção iniciará tão logo os pareceristas estejam com os respectivos contratos publicados no Diário Oficial do Estado, que se encontram em fase de contratação. A previsão de início é na última semana de outubro.
O POVO - Se o edital não for executado até o fim do ano, o lançamento de uma edição em 2021 fica inviabilizado? De que forma o Governo pretende trabalhar em apoio ao audiovisual se um cenário sem Lei Aldir Blanc - que precisa ser executada até o fim de 2020 - e Edital Cinema e Vídeo se concretizar?
Secult - O lançamento de uma nova edição do Edital em 2021 não fica comprometido em decorrência da não execução do XIV Edital Cinema e Vídeo em 2020.
Histórico do Edital
"Atrasos são bem comuns. Antes de 2019, o último edital tinha sido de 2016 e isso dá uma ideia de como as coisas normalmente acontecem", define um produtor inscrito na mais recente edição do Edital Ceará Cinema e Vídeo que prefere não ser identificado pela reportagem. O XIV Edital Ceará Cinema e Vídeo, lançado há um ano, marcou a retomada da chamada pública, mas ele próprio também acabou atingido por atrasos.
A política de fomento ao setor teve edições anuais entre 2009 e 2012, constância quebrada com a não realização em 2013. Entre 2014 e 2016, a periodicidade anual retornou, mas, depois, uma nova chamada só foi aberta no ano passado - e num contexto em que os pagamentos da edição anterior ainda não haviam sido totalmente empenhados.
Além da falta de regularidade no lançamento do edital por parte da Secult, a situação das políticas federais também impacta o setor no contexto estadual. O Edital Ceará Cinema e Vídeo de 2016 teve parceria com a Agência Nacional de Cinema (Ancine) e, com os chamados arranjos regionais, ofertou R$ 17 milhões, sendo R$ 7 milhões de recursos da secretaria do Estado e o restante vindo da Ancine. Com a desidratação e o desmonte da Agência promovidos pelo governo federal, o Edital Cinema e Vídeo de 2019 contou com R$ 8,2 milhões em recursos exclusivos da secretaria estadual.
"Nestes tempos em que a Ancine parece não estar a favor do cinema brasileiro, quase inoperante e contraditória em suas funções básicas, um suporte estadual deveria ser um alento, pelo menos cumprindo prazos e buscando novas ações a garantir o fortalecimento do setor, como tenta fazer, por exemplo, a SPCine", avalia o diretor Allan Deberton, evocando a empresa estatal da cidade de São Paulo que é voltada para audiovisual. Criada em 2015, a SPCine é um dos modelos de inspiração para a criação da Ceará Filmes - Programa Estadual de Desenvolvimento do Audiovisual e da Arte e Cultura Digital.
"Historicamente, o Edital de Cinema e Vídeo, de suma importância, é tratado com descaso pela Secretaria, com pouco empenho em aperfeiçoá-lo e mantê-lo vivo, como deveria", segue Allan. A produtora Amanda Pontes corrobora: "A Secult atualmente anda bem sem credibilidade com relação a cronogramas propostos. O edital é uma ferramenta de fomento super importante e essa falta de compromisso com prazos impacta muito nos profissionais da área", aponta.
A Câmara Setorial do Audiovisual defende a execução regular dos editais. "As políticas públicas da Secretaria de Cultura, dentre elas os editais, são importantes instrumentos, sem dúvida, que devem ser executados a contento e com regularidade, o que não vem acontecendo, infelizmente", avalia a entidade. Apesar de ressaltar a importância de chamadas do tipo, a CSA reforça a urgência em avançar para além dos editais.
"Devemos urgentemente avançar na construção de uma regulação que favoreça o ecossistema do audiovisual para que a política do edital de fomento não seja a única, nem seja executada com interrupções, impactando o setor. Precisamos construir bases sólidas que não nos vulnerabilizem a cada novo governo. A criação de uma lei do Audiovisual e as alterações já propostas para o Mecenato Estadual, por exemplo, são algumas dessas decisões fundamentais", exemplifica a Câmara Setorial.
Entendendo o audiovisual como "plataforma que pode carregar muitos dos setores produtivos ativos no Estado", a CSA cita a proposta da Iniciativa Soul Ceará, que procura converter o setor em vetor de desenvolvimento para o Estado. "Este projeto está desenvolvido e foi apresentado a diversos atores públicos e privados. Mas tudo isso depende de vontade política", reconhece.
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