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Na ponta da agulha
Vida & Arte

Na ponta da agulha

A cultura dos LPs continua pulsante. Confira o que dizem pesquisadores, colecionadores e vendedores sobre os chamados "bolachões"
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Sidney vende discos e é colecionador. Por encomendas no Instagram
Foto: JÚLIO CAESAR Sidney vende discos e é colecionador. Por encomendas no Instagram "Sidney Discos", envia LPs para Fortaleza, Brasil e até para o mundo

Em sua loja de discos de vinil, Durval aprecia o álbum “Cidade do Salvador” (1973), de Gilberto Gil. O ano é 1995. Um cliente explora as prateleiras, e indaga: “Você ainda não entrou na era do CD?”. Inconformado, avisa que a indústria fonográfica logo vai parar de produzir aquele meio de armazenamento de som analógico. Durval retruca: “Tem muita gente que prefere o LP, tá legal? É grande, o CD é só o miolinho. No CD, você consegue escolher a música? Aqui você consegue, você vê a faixa que é grande, a faixa que é pequena. Você escolhe exatamente o ponto da música. Tem o lado A e tem o lado B, que é completamente diferente”. O cliente até concorda, mas diz: “o som do CD é muito melhor”. “O som, sim, mas a música… Não tem comparação!”, reverencia Durval.

A cena integra o roteiro do longa-metragem “Durval Discos” (2002), da cineasta Anna Muylaert. Trata-se de uma ficção, mas Durval adoraria saber que, pela primeira vez em 30 anos, os discos de vinil estão vendendo mais do que os CDs. De acordo com a Associação Americana da Indústria de Gravação (RIAA), os fãs de música gastaram cerca de 232,1 milhões de dólares em discos no primeiro semestre de 2020, nos Estados Unidos. Os gastos em CDs não ultrapassaram os 129,9 milhões. Num universo em que os serviços de distribuição digital obtiveram 4,8 bilhões de dólares no mesmo período, os chamados “borrachões” continuam pulsantes.

Por aqui, não seria diferente. Colecionadores e vendedores se reúnem em grupos virtuais e em feiras, músicos lançam edições especiais e trabalhos recentes em LPs. Cada vez mais, surgem novos apreciadores.

Quando a indústria fonográfica brasileira passava a se dedicar exclusivamente aos CDs, nascia a gravadora de discos de vinil Polysom. Fundada em 1999, a empresa de Belford Roxo, no Rio de Janeiro, se estabeleceu como a única fábrica de vinil da América Latina por oito anos. Após enfrentar dificuldades e ser fechada em 2007, os proprietários da gravadora Deckdisc adquiriram o maquinário e a reativaram em 2009. Desde 2017, os “bolachões” são produzidos não apenas pela Polysom, mas também pela Vinil Brasil, em São Paulo.

Fortaleza - Ce , Brasil, 19-10-2020:  Sidney vende discos e é colecionador. Em seu espaço, Sidney reúne sua coletânea. Ele envia discos por encomendas no Instagram
Fortaleza - Ce , Brasil, 19-10-2020: Sidney vende discos e é colecionador. Em seu espaço, Sidney reúne sua coletânea. Ele envia discos por encomendas no Instagram "Sidney Discos" para Fortaleza, Brasil e até para o mundo. (Foto: Júlio Caesar / O Povo)

Para além do som

Os encantos dos discos de vinil vão além do som, perpassam pelo prazer de ver a arte em uma grande capa, com encarte, conceito e qualidade musical - isso quem diz é Sidney Barros, colecionador e vendedor de discos de vinil. Fissurado por LPs desde cedo, quando seu irmão mais velho ouvia em casa nos anos 1980, Sidney passou a colecionar na década seguinte. Na loja Sidney Discos, vende os artigos diariamente em Fortaleza, mas também entrega para todo o mundo. Destaque para álbuns de rock e da música popular brasileira.

De acordo com Sidney, a facilidade das plataformas on-line pode ter gerado um efeito reverso. “Há uma quantidade exorbitante de músicas disponíveis, você não desfruta 1% da oferta. O disco, por ser um material físico completo, desde a arte da capa até o conceito do Lado A e B, dá mais prazer ao consumir”, afirma.

Destaque na cena cultural do Ceará, DJ Nego Célio sempre foi de ouvir músicas nas mais distintas mídias. Discotecando em seu computador, criou o projeto Funkada na Cabeça em 2011. Certo dia, convidou o DJ Tomé, colecionador de LPs, para tocar - a premissa da parceria era “vinil vs mp3”. Naquele momento, se deparou com canções que não conhecia.

“Eu perguntava o nome da música e, para a minha surpresa, não tinha na internet. Daí surgiu a necessidade de colecionar vinil, já que era outra fonte de pesquisa”, diz. Hoje, tem tantos discos que já perdeu as contas de quantos. Nego Célio produz, ainda, a Festa Urra, com músicas apenas de discos de vinil.

Nego Célio é DJ e pesquisador musical. Coleciona discos e toca em diversos espaços culturais de Fortaleza
Nego Célio é DJ e pesquisador musical. Coleciona discos e toca em diversos espaços culturais de Fortaleza (Foto: Divulgação/Tainá Cavalcante)

“O vinil vai além da audição, eu curto muito as fotografias das capas, das contra capas, o encarte. Ele desperta lembranças e é isso que acho massa. Não sinto tanta diferença sonora em relação ao digital, mas eu não tenho o ouvido absoluto para definir”, afirma Nego Célio. Para ele que ama compartilhar música, djs têm o papel de reverberar artistas esquecidos com o tempo. Em suas discotecas, costuma ouvir comentários como “tinha esse disco lá em casa” ou “essa é a cara do meu pai” - frutos da nostalgia provocada pelo vinil.

FORTALEZA,CE, BRASIL, 19.10.2020: Silvio César de Barros,
FORTALEZA,CE, BRASIL, 19.10.2020: Silvio César de Barros, " O Vitroleiro", é dono de uma loja que vende vitrolas e Lps. A cultura do vinil em Fortaleza. (Fabio Lima/O POVO)

O Vitroleiro

Paulista de Santo André, Silvio César de Barros vive em Fortaleza há 14 anos. Em sua loja O Vitroleiro, comercializa LPs, vitrolas e toca discos dos mais diferentes tipos. Segundo ele, a demanda aumenta a cada dia e o mais interessante é a diversidade dos públicos, que vão desde os mais jovens aos já conhecidos colecionadores. "Acredito que se deve à herança da cultura por meio de familiares e amigos, além da divulgação da mídia", reflete.

Já durante a infância, Silvio sentava à beira da vitrola para escutar histórias infantis com suas irmãs. Depois, vieram as trilhas sonoras das novelas, músicas nacionais e internacionais. Um compacto sete polegadas de Elvis Presley foi o seu primeiro disco, adquirido ao comprar a revista musical "Rock Espetacular".

O compacto de Elvis Presley foi o primeiro de uma série de especiais da revista Rock Espetacular
O compacto de Elvis Presley foi o primeiro de uma série de especiais da revista Rock Espetacular (Foto: Divulgação)

 Mesmo na era conectada, o tempo para ao ouvir um LP. "Existe todo um ritual de colecionar seu artista preferido, conversar com as pessoas sobre isso, apreciar a arte da capa, colocar o disco na vitrola, ouvir os estalinhos da agulha, acompanhar a música com o encarte", diz Silvio. Para ele, é possível resgatar sensações sobre pessoas e momentos da vida por meio deste ritual.

Segundo "o vitroleiro", o disco de vinil mantém as frequências captadas durante a gravação. Para tornarem os arquivos menores, as mídias digitais eliminam algumas frequências que o ouvido humano não capta. "No final, isso influencia na qualidade do som".

Devido à pandemia, as feiras mais tradicionais de vinil ainda não têm previsão de retorno. Com o sentimento de manter viva a cultura, a loja O Vitroleiro ambientará no dia 7 de novembro, das 15h às 20 horas, uma feira piloto - com obediências às normas sanitárias. Na programação, participam também lojas do cenário do vinil em Fortaleza: Sonoro Discos & ETC, Freelancer Discos, Hi-fi 6 Discos e Pablo Discos e Afins.

 

Camila Bonfim, apaixonada por discos de vinil, costuma deixar como trilha musical em seu bar as músicas da vitrola
Camila Bonfim, apaixonada por discos de vinil, costuma deixar como trilha musical em seu bar as músicas da vitrola

Trilhas recentes

“Meus pais sempre gostaram de uma boa música, desde criança mantive contato com vinis. Na adolescência, comecei a gostar mais, principalmente por influência de alguns amigos. Apesar de ter começado a comprar discos há pouco tempo, tenho o sonho de tocar apenas músicas da vitrola no meu bar, o Jimbar. Um dia eu chego lá. Músicas digitais são boas, mas a música vinda diretamente de vinil tem um outro som, ele vai estar sempre num patamar diferente”

- Camila Bonfim, autônoma

“Ainda na infância, meu primo Kléber, que era DJ, me apresentou sua coleção de vinil. Em 2017, numa viagem à São Paulo, passei em frente a um sebo e automaticamente lembrei desses momentos. O que mais me instiga são os pequenos rituais, garimpar os discos, ler as dedicatórias dos antigos donos, admirar as artes e colocar para tocar. O que estamos vivendo agora é um saudosismo em todas as artes, na música não está sendo diferente”

- Bruno Bressam, fotógrafo e realizador audiovisual

Maria Juliana Linhares é etnomusicóloga, musicista e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC). Pesquisa nas áreas de História e Sociologia da Música
Maria Juliana Linhares é etnomusicóloga, musicista e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC). Pesquisa nas áreas de História e Sociologia da Música

Uma questão de valor simbólico

Para Maria Juliana Linhares, etnomusicóloga, musicista e professora do curso de Música da Universidade Federal do Ceará (UFC), trata-se de um valor simbólico. Em entrevista ao O POVO, a professora versa sobre os afetos pelo vinil, as mudanças no mercado fonográfico brasileiro e a diferença da experiência analógica para a digital. Confira.

O POVO - Com o mundo digitalizado, temos acesso às diversas músicas num toque. Além disso, o vinil é um artigo caro, com muitas especificidades. O que faz as pessoas quererem ter vinis?

Maria Juliana Linhares - Acredito que seja uma questão de valor simbólico. O vinil sendo mais raro e mais caro, tornou-se um artigo que invoca um outro tipo de desejo de consumo. Uma certa vontade de usufruir de um artigo nostálgico, artístico e bonito é ativada em quem aprecia. E, nesse caso, as dificuldades para conseguir o tal objeto de desejo, o tornam ainda mais atraente para os aficionados.

O POVO - Muitos músicos estão lançando discos de vinil recentemente, assim como o público apreciador cresce cada vez mais. Por que a procura aumentou tanto nos últimos tempos?

Maria Juliana Linhares - Embora haja algum ar de romantização neste artigo, bem como a associação com um suposto passado musical glorioso, também vejo muito modismo nesta nova forma de recepção musical. Vivemos no capitalismo e o mercado de consumo vive de tendências. A despeito de quem sempre colecionou, hoje muita gente passou a comprar vinil para sentir-se na presumida “experiência artística ímpar”, mostrar aos amigos em um jantar charmoso, ofertar um presente inusitado. Acho que os músicos estão certos em aproveitar essa propensão e incitar isso como fonte alternativa de captação de recursos. Recorrer à ideia do vinil é, também, tentar compensar as perdas ocorridas neste novo mercado fonográfico - o streaming remunera muito pouco os artistas. O compartilhamento não pago de fonogramas é uma realidade posta e infungível e agora está vindo o golpe aos direitos autorais. O velho vinil mostrou-se um respiro aos criadores musicais neste momento de crise.

O POVO - De que forma os discos de vinil pode nos revelar a nossa cultura e história?

Maria Juliana Linhares - Todo e qualquer registro musical tem importância histórica para compreensão da sociedade - partituras, inscrições em objetos, vinis, cilindros de cera, CDs, e também as mídias digitais. Se pensarmos que o vinil foi o meio de registro musical mais popular durante quase cem anos em todo mundo, percebemos o quanto é relevante o seu papel para o século XX, bem como suas consequências que alcançam o século XXI. Cada vinil é um suporte de vários devires de época, são retratos de nichos da sociedade e isso os torna formidáveis. Porém, não são a única base de registro que temos que valorizar. Veja quanta coisa importante estava restrita à tradição oral e agora segue sendo gravada e divulgada a miúdo por causa das facilidades dos aparelhos portáteis.

O POVO - Quais são as características sonoras destes discos? De que forma eles se diferem dos CDs, por exemplo?

Maria Juliana Linhares - Quem compra o vinil por modismo, pouco se importará com as diferenças sonoras por ele provocada. Contudo, o entusiasta do vinil, gosta justamente de sentir aquela impressão auditiva analógica, a equalização antiga, os ruídos de gravação, o barulhinho da fricção da agulha na cera do disco. É uma forma de audição diferenciada. A gravação digital trouxe várias coisas boas, mas “abafou” diversas sensações sonoras que o vinil privilegiava. Pessoalmente, aprecio tanto a experiência analógica quanto a digital.

Para ouvir

Para indicar discos clássicos e recentes em vinil, o Vida&Arte convidou Guillermo Caceres, mestre em Música pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010) e professor da Universidade Federal do Ceará. Em sua tese de mestrado, investigou “O Tempo e o Disco: Estudo acústico e musical da restauração e replicação física de registros sonoros”.

 

Comunidades do vinil no espaço virtual

Amantes dos discos de vinil de todo o País se reúnem em grupos virtuais. Trocam informações, ideias, novidades, comentários e sugestões; promovem encontros, permutam, compram e vendem LPs. Confira!

Para garimpar

Sidney Discos
Instagram: @sidneydiscos
Contato: (85) 9 8690-5877
* realiza entregas

O Vitroleiro
Onde: rua Alberto Magno, 1428 - Montese
Quando: de terça a sexta, das 14h às 18 horas; aos sábados, das 10h às 16 horas
Instagram: @ovitroleiro
Contato: (85) 9 9106-5303

Sonoro Discos & ETC
Onde: rua Padre Miguelino, 1500 - Benfica
Quando: de segunda a sexta, das 14h às 19 horas; aos sábados, das 10h às 18 horas
Instagram: sonorodiscos
Contato: (85) 9 8158 3878

Freelancer Discos
Onde: av. Emília Gonçalves, 1344 - Quintino Cunha
Instagram: freelancer_discosalex
Contato: (85) 9 8787-9214

Hi-fi 6 Discos
Instagram: @hifi6discos
Contato: (85) 9 9109-9027
* realiza entregas

Pablo Discos e Afins
Instagram: @pablodiscoseafins
Contato: (85) 9 8866-0198
* realiza entregas

Planet CD’s
Onde: Galeria Pedro Jorge (rua Senador Pompeu, 834, 2º andar - Centro)
Telefone: (85) 3045-7461

Do Mar Discos
Instagram: @domardiscos
Contato: (85) 9 9749-7550

Discos Raros
Onde: rua Gonçalves Ledo, 23 - Praia de Iracema
Contato: (85) 9 8941-3121

Botija Discos
Onde: rua Ana Cartaxo, 45 - Bairro de Fátima
Contato: (85) 9 8527-2292

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