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"A Febre", de Maya Da-Rin, metaforiza mal-estar social em sintoma físico
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João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.

João Gabriel Tréz arte e cultura

"A Febre", de Maya Da-Rin, metaforiza mal-estar social em sintoma físico

Longa de Maya Da-Rin apresenta a história de Justino, um indígena que trabalha como vigia e sofre com sintomas físicos que metaforizam mal-estares sociais
Tipo Opinião
O papel de Justino valeu a Regis Myrupu o prêmio de Melhor Ator no Festival de Locarno de 2019
 (Foto: divulgação)
Foto: divulgação O papel de Justino valeu a Regis Myrupu o prêmio de Melhor Ator no Festival de Locarno de 2019

A febre enquanto sintoma é sinal de alguma anomalia ou invasão, um aviso de defesa. Em "A Febre", longa-metragem dirigido por Maya Da-Rin, ela vem como sinal de que algo está errado com Justino, ou ao redor dele. Indígena Desana que vive há décadas em Manaus, longe da aldeia, ele trabalha como vigilante do porto de cargas da cidade ao longo do dia. No entanto, passa a ter dificuldades de se manter acordado no serviço ao passo em que se vê acometido, pouco depois, pela tal febre. Em trama lenta, suspensa e envolvente, o filme apresenta um registro simbólico de embates sociais e pessoais contemporâneos. "A Febre" estreia hoje, 12, no Cinema do Dragão.

Acompanhando o protagonista no trabalho, nos percursos de ir e vir - marcados por longos minutos à espera dos ônibus e dentro dos próprios transportes - e nos momentos em família, o filme vai aos poucos montando o cenário pessoal no qual Justino está inserido: ele é viúvo, tem uma filha que trabalha em um posto de saúde e acaba aprovada para cursar medicina em Brasília e um filho, já pai, que mora fora de casa. Nas conversas com a família, relembra histórias e costumes da época em que morava na aldeia.

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No trabalho, por sua vez, Justino vê a chegada de um novo vigia noturno, com quem tem pequenas conversas na troca de turnos entre eles, e precisa lidar com investidas da empresa em relação ao seu estado "desatento". Desta forma, o roteiro do filme constrói relações de tensionamento entre pontos como familiaridade e o mundo externo.

Muitos dos elementos que dão um caráter misterioso e fantástico para "A Febre" estão, em especial, contidos na oralidade. Há, sim, cenas pontuais que trazem essa atmosfera para um plano físico, concreto, mas o tom adotado se constrói com base, principalmente, em momentos como o que Justino divide um sonho incômodo com o irmão ou, ainda, aquele em que o protagonista conta ao neto a história de um caçador que encontra no mato um bando de macacos e acaba levado a outra dimensão, a do mundo dos encantados.

Estes elementos, porém, não tomam de todo o ponto de vista do filme, ao qual somam-se leituras políticas que aprofundam a universalidade daquela trajetória e a potencializam. Da responsável pelo RH da empresa definindo a origem indígena de Justino como uma "condição" ao relato do novo vigia sobre a necessidade de "dormir abraçado" à arma no emprego anterior em uma fazenda porque tinha que lidar com "índio de verdade", são muitas as violências simbólicas às quais o protagonista é submetido pelos que o cercam.

Entre o fantástico e a simbologia política, porém, destaca-se em "A Febre" uma abordagem mais observacional, cotidiana e pessoal do protagonista, no que acrescenta uma importante subjetividade à trajetória de Justino. Ao mesmo tempo que precisa lidar com barreiras racistas e estruturais, ele deve enfrentar questões pessoais e íntimas, que se avolumam desde que sofreu com a partida da esposa e culminam na possibilidade da filha sair de casa, o que demanda dele uma forma de lidar com o cenário que se avizinha. 

O protagonista pode parecer "adaptado" à vida que leva, entre ônibus e contêineres, mas resguarda o espaço familiar como um lugar de segurança, onde se comunica na língua materna, sente falta de comidas que não sejam aquelas de supermercado e desvela memórias. A febre que se abate, então, "concretiza" em sintoma o mal-estar social que o cerca, analisa e julga. Essa união entre questões universais e questões pessoais complexifica o filme, que não funciona como "representante" único e geral das vivências indígenas possíveis ao mesmo tempo em que não pode ser descolado de temas como colonialismo, racismo e epistemicídio.

A Febre, de Maya Da-Rin

Quando: sessões diárias entre hoje e quarta, 18

Onde: Cinema do Dragão (rua Dragão do Mar, 81, Praia de Iracema)

Quanto: R$ 16 (inteira); às terças, R$ 10 (inteira)

Mais informações: www.dragaodomar.org.br

Foto do João Gabriel Tréz

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