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Vida&Arte passeia pela obra e pelas fortalezas de Rachel de Queiroz
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Vida&Arte passeia pela obra e pelas fortalezas de Rachel de Queiroz

O nascimento da escritora, tradutora, jornalista e dramaturga cearense Rachel de Queiroz completa 110 anos neste 17 de novembro. O POVO resgata Fortaleza nas obras de Rachel e a presença de Rachel em Fortaleza
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É possível encontrar Fortaleza em várias obras de Rachel de Queiroz, como
Foto: Fernando Sá em 17/08/1992 É possível encontrar Fortaleza em várias obras de Rachel de Queiroz, como "João Miguel" (1932), "Caminho de Pedras (1937)" e "As Três Marias" (1939)

"(...) A cidade, assim de repente, vista de uma vez e surpreendida de brusco, deu-me um choque no coração, comoveu-me tanto que as mãos me começaram a tremer e meus olhos se encheram de água. Estava ali o mundo, o povo, a vida de fora, tudo o que era interdito à minha vida de reclusa. Sentia medo e alegria, juntos numa emoção violenta, como quem rouba e se apossa de qualquer coisa sonhada e proibida. Mas Esperança me chamou, lá de baixo, e eu desci a escadinha com as pernas trêmulas, embriagada da cidade, feliz do cativeiro enganado um instante com o choque e o rumor do mundo vivo, do mundo de fora, me ressoando no coração".

Maria Augusta, protagonista do romance "As três Marias" (1939), subiu à torre da capela do colégio católico em que se encontrava interna para pedir intercessão da Virgem Maria num exame escolar. A Fortaleza de 1930 seduziu a personagem Guta: "embriagada da cidade", esqueceu-se até de rezar à santa. Rachel de Queiroz, autora do livro, também sorveu a capital cearense em grandes goles. Nascida a 17 de novembro de 1910, a escritora, tradutora, jornalista e dramaturga cartografou o Ceará em obras vanguardistas e pioneiras na literatura brasileira.

Filha de Daniel de Queiroz Lima e Clotilde Franklin de Queiroz, Rachel escreveu "O Quinze" aos 19 anos, acamada sob suspeita de tuberculose, num caderno escolar, a lápis, febril. Consagrou-se amante de palavras, amante de terras. Nestes 110 anos da primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, O POVO convidou as pesquisadoras Natália Guerellus, Socorro Acioli e Cleudene Aragão para desbravar as Fortalezas nas obras "João Miguel" (1932), "Caminho de Pedras (1937)" e "As Três Marias" (1939).

"Ainda que suas raízes familiares e grande parte do seu afeto girassem em torno do sertão cearense e de suas particularidades, Rachel de Queiroz viveu, sobretudo, na cidade. A dimensão citadina da sua escrita é, no entanto, pouco aparente e eu diria até subestimada pela crítica, que tende a reforçar aquela dimensão que a aproxima de outros escritores nordestinos de sua época e que ficou para a história brasileira como 'o grupo regionalista dos anos 30'", pontua Natália Guerellus, pesquisadora do Departamento de Estudos Lusófonos da Université Jean Moulin, na França. "É na cidade que os personagens (de Rachel de Queiroz) são desafiados e evoluem individualmente frente à modernidade e suas consequências, enquanto o sertão aparece como o lugar do pertencimento, do coletivo, da família, da seca, do luto, ou o lugar onde se retomam as forças", complementa.

A escritora Cleudene Aragão, professora do Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e autora do livro "Rachel de Queiroz e Xosé Neira Vilas: Vidas feitas de palavra", destaca que Fortaleza surge nas obras de Rachel em crônicas e entrevistas; em suas memórias escritas com a irmã Maria Luzia — intituladas "Tantos anos" (1998) —; e no cenário das narrativas ficcionais. "Fortaleza foi o palco da formação literária inicial da escritora e dos primeiros círculos literários nos quais Rachel se engajou".

"João Miguel" (1932), segundo livro de Rachel de Queiroz, foi considerado pela crítica de sua época um romance mais amadurecido e consolidou o aflorante talento da cearense. Centrado em um personagem masculino, o livro de forte teor social e psicológico é ambientado em uma prisão. Para a escritora, jornalista e professora Socorro Acioli, Doutora em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF), "'João Miguel' é um livro muito difícil de escrever. A gente chama de romance, mas ele tem as características perfeitas de uma novela como gênero literário. A Rachel fez uma pesquisa na cadeia do Pituí, em Baturité; e o livro acontece em um ambiente só, a cadeia, com uma trama única, o crime. Rachel trata de questões como classe, violência, pobreza, miséria, injustiça".

Fortaleza, nas obras da Rachel, evidencia-se pela primeira vez em "Caminho de Pedras". Biógrafa de Rachel, Socorro destaca que "'Caminho de Pedras' é um livro muito, muito focado em Fortaleza. Inclusive, é onde a cidade surge como cenário. Eu acho que esse livro tem uma característica de documento". Socorro adiciona ainda outra característica forte no terceiro romance de Rachel de Queiroz: a maternidade. "Quando entrevistei a Rachel pelas últimas vezes, comentei sobre a perda de um filho; em todos os livros, alguma mulher perde um filho. Eu acho que a morte do filho é mais central do que outros assuntos, é a partir disso que tudo se desenha".

O tom autobiográfico de Rachel de Queiroz alcançou auge no belo "As Três Marias", de 1939. Guta, a protagonista do romance que abre esta reportagem, é interna num colégio das freiras assim como a própria Rachel passou pelo Colégio da Imaculada Conceição em Fortaleza. "'As Três Marias' é, para mim, o melhor romance de Rachel de Queiroz no que tange a qualidade da narrativa e a coerência da trama e das personagens", defende Natália Guerellus. "É o primeiro romance em primeira pessoa, inteiramente feminino, e fecha com chave de ouro essa década de consolidação da autora no campo literário de sua época. A Rachel de Queiroz que encontramos neste livro é uma autora amadurecida pela força, pelo enfrentamento das adversidades, por experiências traumáticas. 'As três Marias' é um retrato das possibilidades apresentadas para as mulheres de classes diversas na década de 1930".

Para Cleudene, Rachel de Queiroz escreveu "as mulheres e suas lutas cotidianas, as batalhas contra a injustiça social, as relações de amizade e companheirismo e, sobretudo, a partir da trajetória não convencional das mulheres fortes desses romances, a liberdade de sermos quem quisermos ser". Em 1997, Cleudene entrevistou Rachel de Queiroz e questionou a escritora sobre a escrita da nossa terra. "Ao que respondeu Rachel me respondeu: 'Eu acho que eu nunca fiz nada de intenção. Eu sou uma pessoa de dar testemunho... Eu sou uma espécie de testemunho da minha terra e do meu tempo... Aquela coisa... O que eu sei fazer é isso. É contar da minha gente e do meu povo. Como o cantador canta as coisas dele. Embora ela não manifestasse uma intenção deliberada, acabou se convertendo em porta-voz do Ceará".

As marcas em Fortaleza

O espaço em que uma pessoa nasce, cresce e habita durante sua vida sempre será motivo de lembranças. E Fortaleza, com quase três séculos de existência, é responsável por guardar marcas no pensamento das milhões de pessoas que nela viveram. Mas se a pergunta fosse o contrário: quais são os rastros que a Cidade mantém de seus moradores? Talvez seja uma fotografia exposta nos corredores de uma universidade. Até mesmo uma casa que foi decorada pela família e continua igual há décadas. O município, porém, consegue preservar ainda mais as memórias de seus habitantes ilustres. É a terra alencarina - em alusão a José de Alencar. Designa suas ruas em homenagem a cidadãos como Antônio Sales. Em meio a esse conjunto de lembranças que solidifica a identidade fortalezense está, também, Rachel de Queiroz.

Quem caminha pela Praça dos Leões pode encontrar sua estátua em tamanho real. A imagem da escritora está sentada em um banco central, de mãos e pernas cruzadas, com um sorriso no rosto. Sob responsabilidade da Academia Cearense de Letras, a figura é um convite para sentar-se. A instituição que cuida da estátua é a mesma que a autora fora membro durante a última década de sua vida. A partir de 1994, ocupou a cadeira 32. A demora para seu ingresso aconteceu por um motivo: os estatutos impediam que cearenses que residiam em outros estados se associassem.

A ACL, entretanto, não é o único ambiente que proporciona esse espaço de lembranças. A Universidade de Fortaleza (Unifor) disponibiliza a Coleção Rachel de Queiroz, que conta com mais de 3 mil itens relacionados à romancista. Entre livros e periódicos, o arquivo foi doado pelo Instituto Moreira Salles em 2017. "São obras únicas que pertenceram à ela. 1.200 delas têm dedicatórias de grandes nomes, como Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade", explica Leonilha Lessa, gerente da Biblioteca Central da universidade.

Atualmente, as atividades presenciais estão suspensas para quem não é estudante em respeito às medidas de distanciamento social. "A cada ano que passa, as obras de Rachel de Queiroz ficam mais importantes. Quando vai se distanciando da vida do escritor, sua obra fica mais relevante. Isso nos faz ampliar ainda mais nossos cuidados. Conservar as obras é preservar a história de Rachel, além da literatura cearense e também brasileira", afirma a bibliotecária.

Ainda há outro lugar que preserva a memória da autora. Exclusiva para pesquisadores e escritores, a biblioteca do bibliófilo José Augusto Bezerra conta com o "Memorial Rachel de Queiroz" desde 2008. Com aproximadamente 2 mil itens, há crônicas, contos, correspondências, documentos e vários objetos pessoais. Entre as peças de destaque, está a primeira edição de "O Quinze" (1930) que pertenceu à mãe de Rachel, Clotilde Franklin de Queiroz. Também tem a mesa em que ela escreveu seu romance de estreia. Segundo o colecionador, que é também fundador Associação Brasileira de Bibliófilos, grande parte do acervo foi doado para ele pela família da romancista. No momento, o acesso ao conteúdo é restrito e também está fechado devido à pandemia. Entretanto, ele planeja divulgar os documentos de sua biblioteca no meio virtual.

Dentre todos os espaços de Fortaleza que guardam rastros de Rachel de Queiroz, talvez um lugar mereça maior destaque: a casa no bairro Henrique Jorge que pertenceu à sua família. Em 1927, o pai, Daniel de Queiroz Lima, adquiriu a residência para facilitar os estudos dos filhos. Foi naquela moradia, com vista para a Lagoa da Parangaba, que a jovem autora escreveu "O Quinze". Distanciada de sua rotina por causa de uma doença, enfrentava dias de tédio. Os familiares não permitiam que ela realizasse esforços. Mas, teimosa, esperava todos irem dormir para aproveitar os momentos de silêncio e escrever. Desfrutava de um pequeno ambiente iluminado para redigir a mão a primeira versão daquilo que se tornaria um dos clássicos da literatura brasileira. A habitação, denominada carinhosamente de "Casa dos Benjamins" em alusão a suas árvores centenárias, foi tombada pelo município em 2009.

Como começar a ler Rachel

Biógrafa de Rachel de Queiroz, a escritora Socorro Acioli recomenda: "Sugiro muito ler na ordem para quem quer ler a obra completa. Para quem quer ler só um livro, quem quer só conhecer e nunca leu Rachel, eu acho que 'João Miguel' também é um bom livro de entrada, mais que 'O Quinze'. O melhor de todos é o 'Memorial de Maria Moura', não tenho nem dúvidas".

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