“Eu gosto mesmo é de comer com coentro/ Uma moqueca, uma salada, cultura, feijoada, lucidez, loucura”. Assim diz “Objeto Semi-identificado” (1969), canção em formato de diálogo composta por Gilberto Gil, Rogério Duarte e Rogério Duprat. Na composição, nona faixa do álbum “1969” de Gil, os fragmentos reafirmam a identidade brasileira, com referências à cultura alimentar. Uma cozinha marcada pelas lutas e resistências ancestrais, carregada de cores, técnicas, cheiros, saberes e sabores. Nesta cruzada, há a vasta contribuição dos antepassados - de diferentes etnias - do continente africano, trazidos à força para este território.
A marca africana na cozinha brasileira incorpora diversas técnicas de preparo, produtos e adaptações de receitas e rituais - diz Vagner Rocha, doutorando em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). “Nossa gastronomia nos permite revisitar o processo de formação da sociedade brasileira, marcada pela criatividade dos africanos em meio aos horrores da escravidão”, diz o pesquisador das relações sobre comida, religião e cultura.
Quando os povos africanos foram trazidos ao Brasil para serem escravizados pelos portugueses, vinham também especiarias, sementes, grãos, frutas e a memória coletiva. Falar de gastronomia e consciência negra está diretamente ligado ao racismo e ao processo de apagamento das referências afro-diaspóricas no País. Vagner lembra que até hoje é possível perceber discursos dessa estrutura de poder, demarcações como “comida de pobre, comida de rico, alta gastronomia e cozinha popular”.
Após a independência do Brasil de Portugal, a influência francesa teve forte incumbência no processo de “desafricanização” da gastronomia brasileira. “Na visão europeia, havia excesso de pimenta, de açúcar e de tempero. O Brasil precisava ‘refinar’ a sua cozinha para se afastar das influências africanas e indígenas, tidas como rudimentares”, conta o pesquisador.
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Destacar a culinária afro-brasileira significa perpetuar consumo de produtos, preparo de receitas e pesquisas sobre os pratos. “Se é uma cozinha ancestral, ela é também uma cozinha real, já que nós, negras e negros, descendemos de mulheres e homens que foram rainhas, reis, príncipes e princesas no continente africano”, diz Vagner.
Algumas contribuições
O cuscuz, tão consumido pelos nordestinos, é uma adaptação de um prato originário do Magrebe, região do Noroeste da África
Pamonha de milho se inspirou no acaçá, comida presente nos terreiros de candomblé
Leite de coco é originário da Etiópia (País da região denominada 'Chifre da África)
Uso de folha de bananeira para enrolar ingredientes
Maneiras variadas de preparar galinha e peixe
Banana, acarajé, inhame, quiabo, vatapá, feijoada, pimenta malagueta e azeite de dendê
Fonte: Vagner Rocha, produtor cultural, doutorando em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e apresentador do podcast Viagem Gastronômica com Dr. Dendê
Produtor Local
A cultura viva da África está em tudo o que se é e no que se come - numa simbiose inseparável. Não há como delimitar exatamente onde começa ou termina, porque atravessa as raízes da existência brasileira no mundo. Para a chef Marina Araújo, proprietária do Chamego, a herança africana está no DNA da cultura alimentar do Brasil e deve ser exaltada.
A cozinha de Marina acha-se na saudação da comida de terreiro, senzala, tribo e casa de taipa. No Chamego, ressalta a gastronomia dos povos originários do Brasil, os indígenas; e dos povos originários da Terra, do continente mãe África. “Saber reconhecer que a África ajudou a desenhar o que é Brasil hoje é obrigação de todo filho desta terra. Contam-se as histórias valorizando o que é nosso”, reflete.
Para a chef, isso é possível comprando de quem faz e valoriza esses encontros. Amanhã, 21, Marina fará um menu experiência com homenagem a Gilberto Gil no Chamego, com degustação em cinco etapas ao som do artista. Uma “chamegagem ao pé do ouvido”, traduzindo as canções e vivências do artista por meio da gastronomia.
Mais memória
A chef Didda Carneiro cresceu em meio à influência da gastronomia africana, alimentada logo cedo com mingaus. Quem preparava era sua avó paterna, Dona Teotonha - "grande sacerdotisa do candomblé e professora das crianças do bairro Plataforma, periferia de Salvador, na Bahia" - lembra a chef.
Quando chegaram à Fortaleza, o acarajé, Patrimônio Histórico Nacional Brasileiro, garantiu o sustento da família. Sua mãe, Tia Nice Machado, foi uma das precursoras dos tabuleiros na Capital. Didda e a irmã, Nega Teresa, herdaram a arte, o saber e o ofício das baianas de acarajé. Tiveram contato direto com o racismo e a intolerância religiosa, mas isso só deu forças para continuarem.
Didda ressalta que a religião de matriz africana tem forte influência na gastronomia brasileira, a partir das oferendas entregues aos Orishàs. Portanto, também na sua vida. Formada em Istres, na Provence Francesa, a chef mistura os sabores da cozinha brasileira e internacional. E se prepara para lançar seu novo projeto, "Nega Teresa", restaurante em homenagem à irmã - que fez sua passagem neste ano - e à avó.
Sabores e saberes
Chamego
Menu: duas alternativas de PF (tem opções veganas)
Onde: La Feira Orgânica (rua Torres Câmara, 996 - Aldeota)
Quando: de terça a domingo, das 9h às 17 horas
Contato: 85 99982 1310
Instagram: @ochamego
Feijoada na Sombra
Onde: rua Nestor Barbosa, 564 - Amadeu Furtado (sede) e quiosque no setor roxo do Centro Fashion (av. Filomeno Gomes, 430 - Jacarecanga)
Quando: de segunda a domingo, a partir das 11 horas
Contato: (85) 9 9409 2707
Instagram: @feijoadanasombra
*pedidos via Whatsapp e iFood
Cozinha do Acarajé
Quando: de segunda a domingo, das 18h às 23 horas
Onde: rua Dom José Lourenço, 850
Contato: (85) 3879 0986 ou (85) 99853 0987
Instagram: @cozinhadoacaraje
RAIZ Cozinha Brasileira
Quando: de segunda a domingo, das 11h às 23 horas
Onde: av. Washington Soares, 3300 - Engenheiro Luciano Cavalcante
Contato: (85) 3035 9999
Entrega: (85) 99401 9530
Instagram: @raizcozinhabrasileira
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