No semiárido cearense, Zé rasga a terra feito flor da paisagem. Em Orós, município da região Centro-Sul do Estado, recolhe roupas sujas de casa em casa, equilibra a trouxa na cabeça e lava no leito do rio Jaguaribe. Sabão, um pedacinho assim… Nos enterros, Zé chora os mortos, conhecidos e desconhecidos, feito as carpideiras bíblicas. Aos vizinhos, pede restos de comida e os distribui para saciar a fome de animais abandonados, que vagam pelas ruas. Zé — que dispensa sobrenomes — transita entre gêneros, cultiva longos cabelos, veste o que a sociedade convencionou como trajes femininos. Aos 64 anos, Zé é real e de viés.
"Sou lá da Boa Vista, de Quixelô. Cheguei em Orós com uns 20 anos. Tá com muitos anos, né?", relembra Zé. Na última terça-feira, 15, Zé recebeu das mãos do vereador Nelço Rodrigues o título de cidadão oroense — reconhecimento por manter viva a tradição das lavadeiras e também pelos anos dedicados ao trabalho doméstico nas casas das cidade. "Eu lavo roupa e trabalhava nas casas. Aprendi com a minha família mesmo, minhas irmãs. Desde pequeno eu cuido da casa, sou dono de casa desde novinho. Na casa do povo eu arrumava, cozinhava, mas tá com um bocado de tempo que deixei… Agora, todo dia de manhã eu vou lavar roupa no rio. Me pagam uma mixaria", ri-se Zé, "mas com esse dinheiro dá pra eu viver".
Leia também | Confira as dicas de programações culturais para este fim de semana
A singular trajetória de Zé borda-se na história de Orós. "Zé tocou a vida de maneiras muito simples, sempre trabalhou nessa área da limpeza, é uma pessoa muito batalhadora. Zé é também muito generoso, tem um coração bom: ele tem o hábito de ir para todos os velórios, ele guarda lembranças dos falecidos e presta homenagem às famílias que perderam seus entes queridos. Zé é muito querido no Orós, acho que ele conhece a casa de todo mundo", compartilha o produtor, gestor cultural, curador e diretor teatral oroense Edson Cândido.
Morador de Fortaleza há pouco mais de uma década, Edson conheceu Zé ainda durante a infância e reencontrou o habitante de Orós quase 20 anos depois de sair da cidade. "Zé lavou a roupa da minha mãe, mas eu nem lembrava disso, foi ele que me disse em nosso reencontro. Eu me emocionei muito com a lembrança", narra o produtor. Zé vive na contramão da cisnormatividade, mas nem dá nome — só é. "Zé é um personagem muito marcante que vive no anonimato. Muitas vezes, foi excluído por sua orientação sexual, pelo seu gênero. A sociedade faz questão de colocar pessoas como o Zé à margem, na invisibilidade, sem políticas públicas. Quantos Zés (existem) espalhados pelo mundo...", continua Edson.
Leia também | Menino Maluquinho faz 40 anos e ganha novos amigos para falar sobre Síndrome de Down
Para celebrar a vida de Zé "e tudo que ele representa não só pra mim, mas para muita gente que quer homenageá-lo", Edson criou o projeto Bruta Flor junto ao fotógrafo Mateus Leandro Lopes, de Icó. A expectativa é contemplar uma exposição fotográfica e um documentário, ambos com lançamento previsto para o ano que vem. "Bruta flor é uma uma planta nativa, um cacto, uma planta bem dura e rígida. O Zé tem essa representação de ser duro na queda, sabe? Batalhador, cearense que não foge à luta — é como essa planta que consegue sobreviver na seca. O Zé é resistência nesse papel ora homem, ora mulher", explica.
Para Mateus Leandro Lopes, o convite de Edson possibilitou uma série de encontros sensíveis ao seu olhar fotográfico. "A gente fez algumas sessões de fotos no chamado Poço da Véia, onde o Zé lava roupa, que fica na sangria do Açude de Orós — quando o açude sangra, corre pra dentro do rio Jaguaribe. O processo de fotografar o cotidiano foi bem simples, a gente tentou não interferir em nada. Nosso objetivo foi deixá-lo bem à vontade, tranquilo, no sossego, só ir registrando mesmo", relata. Além dos registros imagéticos do trabalho de Zé junto às águas do Jaguaribe, Edson e Matheus estão em processo de fotografar e filmar também a intimidade da casa.
"Eu conheci o Zé por meio do Edson, mas é só ter contato que a gente já vê: o Zé é um ícone em Orós, uma pessoa bem querida, conhece todo mundo. Apesar de não valorizarem — a gente sondou e ele cobra bem abaixo do normal pelo serviço, mas ele mesmo diz que é porque gosta, é só pra se manter mesmo —, no trecho que o Zé caminha até o açude todo mundo fala com ele. É um símbolo da cidade", complementa Mateus.
Leia também | Cuscuz é declarado Patrimônio Imaterial da Humanidade
A exposição fotográfica tem lançamento virtual previsto para 20 de janeiro de 2021. Segundo Edson, o momento pede muitos cuidados para evitar contaminação com o novo coronavírus, mas o material já captado é bastante robusto. "Nós iniciamos esse primeiro momento no Theatro José de Alencar, mas o Bruta Flor é um projeto aberto. Foi contemplado no Edital Cidadania Cultural e Diversidade da Secretaria da Cultura do Estado (Secult), porém nosso intuito mesmo é transformar também em outros produtos — vou buscar recursos para fazer um documentário e também um espetáculo de teatro, um monólogo", adianta.
"É dessas histórias que eu não posso deixar de falar, é dessa gente que eu não posso deixar de falar. Zé acompanhou tantas gerações, por suas mãos passaram muitas roupas, muitos cresceram… Ele vive sozinho e sem família, é mais que justo homenagear o Zé — ele é a minha voz, é a voz de tantos Zés, é a voz de tantas Marias", finaliza Edson.