Quem passasse pela Praia Formosa, no Pirambu, em meados da década de 1940, encontraria um cenário inusitado para a época. Os muros das casas dos pescadores estariam pintados com imagens de pássaros, cobras e outros animais típicos da memória ancestral brasileira. Com giz, carvão, pedaços de tijolos e plantas, um homem costumava ilustrar aqueles casebres e colorir o bairro. Os moradores que viviam nas proximidades o consideravam um estranho indígena, por vezes, até um louco. Ele tinha um trabalho que ainda não podia ser classificado como "arte" pela população porque não seguia os padrões europeus. Mas aquela figura pouco compreendida - que também faleceu da mesma forma - era Francisco Domingos da Silva, conhecido somente como Chico da Silva. Nascido há 110 anos, mas sem dia e mês registrados, o artista acreano cresceu e estabeleceu sua carreira em Fortaleza.
Ao se deparar com a situação, o pintor suíço Jean-Pierre Chabloz (1910 - 1984) quis incentivar o potencial artístico do autor das obras. Por isso, concedeu-lhe tinta guache, papel e pincel para que aquele muralista quase "mambembe" pudesse experimentar novos formatos. Por intermediação desse fomentador europeu, conseguiu destaque na sociedade cearense. "Ele teve um reconhecimento que, na época, nenhum artista do nosso meio havia conseguido. Nós achávamos, e achamos, que tudo que é de fora é melhor. E o Chico obteve reconhecimento no exterior e até ganhou um prêmio na Bienal de Veneza, que era considerada a exposição mais importante do mundo", explica Roberto Galvão, artista plástico e autor do livro "Chico da Silva e a Escola do Pirambu".
Com a relevância internacional, começou a ser valorizado entre a população abastada de Fortaleza. Ele costumava vender suas obras nos bairros ricos e a demanda de trabalho cresceu. A situação fez com que criasse a "Escola do Pirambu". Neste local, crianças e adolescentes com talento para os desenhos trabalhavam e aprendiam ao seu lado. "Temos que compreender que existe um processo de produção coletiva no Ceará. Há várias maneiras empregadas. O Chico, com sua ampla sabedoria, montou um sistema coletivo desses, mas era meio primitivo", afirma Galvão.
Ao criar essa maneira de produção, entretanto, causou diversas polêmicas que envolviam a autoria das obras. Houve, por exemplo, o escândalo da adolescente Maria do Carmo Moreira. Ela se pronunciou sobre várias obras do artista expostas no Brasil que seriam suas. Também ocorreu a denúncia da esposa dele, Dalva da Silva, que informou à polícia sobre quadros falsos em uma exposição no Rio de Janeiro. As situações, somadas ao crescimento contínuo das vendas, fez com que parte da população desvalorizasse seu trabalho. Inclusive, o próprio Chabloz se manifestou em entrevista para O POVO, publicada em 30 de junho de 1969. Para ele, as obras haviam se tornado "publicidade barata".
O fim de sua carreira foi permeado por adversidades. Da ascensão à decadência, teve de enfrentar a pobreza e a perda de amigos. Sua morte, em 1985, chegou a ser trágica: conforme O POVO registrou em 7 de dezembro do mesmo ano, pouco mais de meia dúzia de pessoas compareceram ao enterro. "Lamento profundamente que no enterro de Chico da Silva, patrimônio da arte nacional, conte com menos de meia dúzia de pessoas. É ingratidão da vida, é ingratidão dos homens", disse o então governador Gonzaga Mota para o jornal.
Todas as circunstâncias - positivas e negativas - que viveu não excluem a importância de sua trajetória para o Ceará. "Ele fez uma obra totalmente diferente, pode ser colocado entre os maiores artistas que o Ceará já teve. Chico não teve estudos formais e foi salvo por isso. Foi salvo da tendência educativa que temos de fazer como as pessoas de fora fazem", comenta Roberto Galvão. A partir de suas pinturas, idealizou um universo próprio, em que cores e animais dialogam para reavivar a memória mítica da população.
Para a diretora do Museu de Arte da UFC (Mauc), Graciele Siqueira, o artista foi uma figura singular para a história do Estado. "Chico da Silva vai dos muros das ruas da periferia às galerias e museus de arte. É descoberto e reconhecido pela originalidade dos seus temas e pela qualidade artística do seu traço. Sua produção nos faz refletir sobre a importância da arte e seus valores simbólicos, assim como valores de autenticidade e sacralidade", indica.
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