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Histórias e heranças, tesouros ancestrais
Vida & Arte

Histórias e heranças, tesouros ancestrais

|MÚSICA| Em sofisticado álbum "Do meu coração nu", cantor, compositor e pianista pernambucano Zé Manuel entrelaça ancestralidade negra e luta antirracista
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Zé Manoel realiza live neste fim de semana (Foto: Máquina 3/ DivulgaçÃo)
Foto: Máquina 3/ DivulgaçÃo Zé Manoel realiza live neste fim de semana

"Se eu não tivesse algo importante para falar, eu não lançaria esse disco". Cantor, compositor e pianista, Zé Manoel lançou o sofisticado disco autoral de canções inéditas "Do meu coração nu" pelo selo Joia Moderna em outubro de 2020, que ganhou recentemente edições em CD no Brasil e no Japão. Numa delicada filigrana que entrelaça heranças ancestrais e futuros sonhados, a obra é também retrato em carne viva dos tempos presentes embotados pelo racismo.

O terceiro álbum de estúdio do pernambucano de Petrolina, radicado em São Paulo, foi produzido por Luisão Pereira e reúne parcerias como a cantora e compositora Luedji Luna e o maestro Letieres Leite. Em 11 faixas, Zé Manoel conta histórias que precisam ser ouvidas. 

O POVO: O álbum "Do meu coração nu" (2020) chegou ao público cinco anos após o lançamento de "Canção e silêncio" (2015), seu segundo disco de estúdio. Como foi o processo de maturação do novo trabalho? Como você se transformou enquanto artista?

Zé Manoel: Eu trabalhei "Canção e silêncio" (2015) e fiquei na expectativa de lançar o disco seguinte. Depois, veio o "Delírio de um romance a céu aberto" (2019), que foi um projeto proposto pelo selo Joia Moderna com releituras das minhas músicas cantadas por outras intérpretes e eu embarquei, era um projeto bonito e importante pra mim... Mas eu estava na expectativa de lançar um novo disco que fosse continuação do que eu comecei a fazer em "Canção e silêncio". No álbum "Do meu coração nu", eu tinha esse desafio de dar continuidade musicalmente ao que estava fazendo, mas com uma nova perspectiva de diálogo. Foi um trabalho interessante, eu precisava achar aquele lugar que soasse como Zé Manoel nos outros discos, mas trazer novos assuntos.

OP: A canção que abre o álbum, "História Antiga", menciona o homicídio do músico negro Evaldo Rosa em operação do Exército no ano de 2019. "Num país com armas apontadas/ Políticas ultrapassadas", como sua arte se alia na luta antirracista?  

Zé Manoel: Eu precisava trazer os assuntos que fazem parte da minha vida, era essa a minha necessidade. Esses assuntos me atravessam como pessoa preta, miscigenada, como um cara que vive num centro como São Paulo, que vem de uma periferia de Recife. Eu queria trazer essa minha experiência fora dos palcos para dentro da minha música em vez de ficar divagando sobre assuntos que eu já tinha falado, que eu sempre falo e que gosto de falar — como natureza e afeto, por exemplo. "História antiga" fala de acontecimentos que marcaram 2019, mas que não param de marcar a gente todos os anos, toda hora essa violência racista se renova através de pessoas diferentes. A população preta sempre soube que vive num mundo muito racista, a população de mulheres sempre soube que vive num mundo machista — agora todos estão tomando conhecimento desse mundo violento conosco e com os outros. Eu quase não tenho paciência para ouvir música com muitos devaneios, completamente alheias, no momento em que o circo está pegando fogo, em meio a tantas urgências. Eu sinto que, se eu não tivesse algo importante para falar, eu não lançaria esse disco. Pra mim, foi importante fazer esse álbum para eu continuar existindo até como artista mesmo. Eu preciso estar vivo.

OP: A ancestralidade negra também atravessa "Do meu coração nu". Qual é a importância de narrar essas memórias e histórias continuamente invisibilizadas pelo racismo?

Zé Manoel: Eu acho que entender nossas raízes faz parte de se fortalecer. Como a gente vai responder nessa guerra, como a gente se posiciona, tudo isso tem uma base firme — e essa base é nossa ancestralidade, são nossas histórias, são histórias que não necessariamente são das nossas famílias, mas que nos atravessam como pessoas pretas e miscigenadas. A gente se acostumou a não ter história... Eu mal sei da história da minha família, sabe? Como é que a gente se fortalece para lidar com tudo isso se a gente não tem essa base histórica? Eu quis trazer isso para a música também para estimular as pessoas a procurarem sua ancestralidade. Nossa história foi escrita por mãos brancas, apagadas e manipuladas. Todas essas estruturas têm que ser questionadas.

OP: "Adupé Obaluaê", última canção do álbum, é um agradecimento ao orixá da doença e da cura. "Do meu coração nu" também foi uma cura para você, Zé?

Zé Manoel: Sim, sem dúvida. O disco termina com uma música sobre Obaluaê por vários significados, mas o primeiro de todos é porque eu sabia que tocaria em assuntos sensíveis, que acabam despertando gatilhos em algumas pessoas — como racismo e violência. A música é uma cura para essas dores que são muito comuns a quem cresce num País como o nosso, dores que se acumulam ao longo da vida. É um pedido de cura, ao mesmo tempo que retrata a ancestralidade da religião afro-brasileira através dos orixás; Obaluaê é um orixá muito importante pra mim. Nosso produtor e amigo, Luisão Pereira, descobriu um câncer no meio do processo e precisou passar por muitas cirurgias… Essa música nos acompanhou durante toda a recuperação. Parte da música eu fiz durante a pandemia, então também passou a ter um significado muito grande de proteção. Eu acho que esse disco é um documento.

 

Do meu coração nu, Zé Manoel

Lançamento: Joia Moderna

Distribuição digital: onerpm.ffm.to/domeucoracaonu

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