É fato: Fortaleza se tornou referência no pré-carnaval nos últimos anos. No próximo sábado, 16, seria o início do tradicional festejo - que inaugura o ciclo carnavalesco e, consequentemente, o calendário cultural da Capital. Apaixonados pelo movimento já estariam acompanhando os ensaios a céu aberto dos seus blocos preferidos. Ou mesmo tocando, envoltos à alegria e ao afeto do calor humano, entre cores, formas e expressões. Para sair às ruas, os blocos teriam passado o ano de 2020 ensaiando, definindo camisa, acessórios e repertório. Em razão da pandemia, não é possível. Sem o carnaval, o que esses amantes do samba e da festa estão fazendo? Como na clássica canção de Chico Buarque, “Tô me guardando pra quando o carnaval chegar”. Ou melhor: quando puder chegar.
“(...) Esse espírito de apreço pela diversidade e pela plenitude do viver nos faz entender que o atual cenário exige recolhimento e paciência, nos obrigando a um afastamento momentâneo, que é sofrido, mas, também, é garantia de saúde para estarmos juntos por muito mais tempo”. O trecho é parte da nota pública assinada - ainda em outubro de 2020 - pelos blocos Bonde Batuque, Camaleões do Vila, Caravana Cultural, Chão da Praça, Concentra Mas Não Sai, É Só Isso Mesmo, Luxo da Aldeia, Pra Quem Gosta é Bom e Unidos da Cachorra. Esses tradicionais blocos do Carnaval de Fortaleza definiram como “condição irreversível” ao retorno “a existência de uma vacina eficiente e segura” no combate à pandemia. Mais de 200 mil brasileiros morreram pela doença até hoje.
Após o período do ciclo carnavalesco, os blocos geralmente entram em recesso para voltarem cheias de energia aos ensaios. O momento coincidiu com a chegada da Covid-19 no Brasil. Algumas baterias retornaram com menor intensidade, de acordo com a reabertura das atividades econômicas e comportamentais, mas suspenderam os encontros presenciais pelo aumento de casos da doença. Outras seguem com ensaios em menor escala, com distanciamento social, uso de álcool em gel e máscara. Tem também os que optaram por não retornar.
Algo é unânime: a saudade. Ao O POVO, foliões apaixonados - do Pré-carnaval e Carnaval de Fortaleza - falam sobre atuação em 2020, além de prospecções e sentimentos do período em 2021.
Denis Brito, coordenador pedagógico e mestre de bateria da Unidos da Cachorra, é apaixonado pelo carnaval. Daqueles que costumam aproveitar “todos os blocos”, da Praia de Iracema ao Benfica. “O Carnaval em Fortaleza vinha em uma crescente, muitas pessoas pararam de viajar para ficar na Capital Alencarina. Eu fui um! Depois de anos em Olinda, Rio de Janeiro e praias, já estava no meu oitavo ano em Fortaleza. Para matar a saudade, só com muitos vídeos e encontros virtuais com os amigos…”.
Para o mestre de bateria, no entanto, “seria uma irresponsabilidade colocar o bloco na rua, na atual situação”. Com mais de 20 anos de história, a Unidos da Cachorra tem sua bateria intitulada Patrimônio Cultural de Fortaleza, fabrica seus próprios instrumentos e forma ritmistas. Em 2020, a “Escolinha de Ritmistas da Cachorra” foi realizada no formato on-line. Conforme as recomendações das autoridades de saúde, a turma de 2021 deve abrir vagas logo mais.
O bloco chegou a fazer uma live, mas “não é a mesma coisa…” - lamenta Denis. Na reabertura gradual das atividades econômicas e comportamentais, a Unidos da Cachorra retomou os encontros presenciais, seguindo os protocolos de segurança. Com o aumento dos casos da Covid-19 no último bimestre do ano, os ensaios foram suspensos.
Segundo Denis, “a perda financeira é incalculável”, uma vez que não se deve aglomerar em eventos, shows e ensaios. “Todo o setor foi penalizado nesse período. O que segurou as pontas foi a escolinha virtual, que uma parte da renda foi doada para a comunidade do Poço da Draga (na região onde fica a quadra de ensaios)”. Se a maioria da população estiver imunizada até julho, a Unidos da Cachorra projeta “um carnaval fora de época”. “Logicamente que isso será estudado com o setor público e com todos os blocos… O que nos resta é esperar e torcer para a vacina chegar o mais rápido possível”, diz o mestre de bateria.
“Sem vacina, não tem como ter pré-carnaval ou carnaval”, frisa Tiago Nóbrega, presidente da escola de percussão e bloco Camaleões do Vila. Com dez anos recém completados, a “onda verde” conta com mais de 120 ritmistas, em repertório que mistura clássicos carnavalescos e releituras. O bloco tem sua origem atrelada ao Espaço Vila Camaleão, considerado por muitos como “o lugar do samba” em Fortaleza.
O bloco teve cerca de quatro ensaios realizados em 2020, mas os encontros também foram suspensos devido ao aumento de casos da Covid-19. Não há ainda previsão de retorno dos encontros presenciais ou de programação on-line do carnaval. Para quem quer participar da escola, o “Camaleões” pretende abrir vagas, mas a data ainda é incerta.
“A palavra realmente é saudade, mas a gente está com esperança de que a vacina chegue o mais rápido possível... e a gente possa fazer nem que seja um carnaval fora de época quando tudo isso passar. Esperamos que os governantes resolvam esses impasses, que chegue a vacina, comprem agulhas... que a população seja vacinada para que a nossa vida volte ao normal e que a gente possa se divertir com tranquilidade”, anseia.
Júlia Medeiros, estudante de Medicina, é ritmista e instrutora de tamborim do Bloco Baqueta. Sem saber como superar a saudade, brincou: “quando vocês descobrirem, me contem, porque tá difícil!”. Para ela, passar por este período tem sido um misto de sentimentos. “É saudade, nostalgia, felicidade… e aquele fiozinho de esperança, da gente poder experienciar isso tudo novamente. Vamos aprender a valorizar mais os momentos que tivermos todo mundo junto, curtindo e aproveitando”.
O Bloco Baqueta, originado como escola em 2007, continua ensaiando desde meados de agosto, mas com uma intensidade diferente. Antes eram dois ou até três ensaios por semana. Hoje, apenas um, seguindo todos os protocolos. A bateria ainda não conseguiu se encontrar por completo. As matrículas para “batucar” já estão abertas, com previsão de início das aulas para fevereiro.
Para Julia, tocar e festejar, mesmo com as restrições, “é um momento de refúgio”. Parafraseando o sucesso na voz de Alcione, ela diz: “não vamos deixar o samba morrer, vamos arranjar alguma maneira, mesmo virtualmente, de trazer felicidade nestes tempos difíceis”.
Quando o assunto é carnaval, o bloco Luxo da Aldeia tem presença aguardada pelos fortalezenses. Com a ideia de valorizar a música carnavalesca do Estado, o grupo surgiu em 2006, interpretando composições de cearenses - nascidos ou radicalizados - e cantando suas próprias canções. O nome, inclusive, tem origem num dos versos da música “Terral”, do cantor e compositor Ednardo. Desde então, os músicos não pararam.
No início de 2020, o Luxo da Aldeia lançou o single “O Grito de Carnaval é um Grito de Liberdade”. Para o grupo, a faixa continua atual diante do contexto político brasileiro, pois reverbera o protesto contra diversas formas de opressão e o desejo por tempos melhores. Os oito músicos estiveram juntos no último carnaval e, devido ao isolamento social, não se encontraram pessoalmente desde então. As atividades do bloco - que escolheu não participar de editais de fomento público - seguem por meios virtuais.
Segundo Mateus Perdigão, um dos fundadores do Luxo da Aldeia, não há possibilidade de qualquer apresentação pública do grupo, mesmo com público reduzido e seguimento de protocolos. “Pelo visto, a situação vai durar ainda uma boa parte de 2021... A gente tem um Governo Federal que não ajuda em nada no combate à pandemia. Estamos aproveitando para nos organizarmos internamente. Entendo que isso afeta toda uma cadeia produtiva, não só econômica, mas social também, simbólica. Dá vontade, dá saudade de estar no meio da rua… Isso é inegável. Mas, enquanto o carnaval não puder chegar, estamos nos guardando, tal qual a música do Chico Buarque. É uma opção nossa”.
Carol Grangeiro, profissional de marketing, carrega consigo - como uma preciosidade hereditária - o amor pelo carnaval. Seu pai, apaixonado pela festa que era, a levava pelos “prés” de Fortaleza. “Eu lembro, bem criança, da gente no bloco ‘Periquito da Madame’... ‘As Bandalheiras’ (do bloco Bandalheira) na minha adolescência…”, rememora. Ela ingressou no Camaleões do Vila em 2014, mas já acompanhava o bloco bem antes com seus amigos. Entrou como ritmista, tocando tamborim. Hoje, integra a diretoria administrativa.
“Quando a gente pensa que, no próximo sábado, era para a gente estar na avenida desfilando… Chega aperta o coração. Se Deus quiser, a vacina vai chegar e a gente coloca o nosso bloco na rua! Não dá é pra ser leviano e irresponsável, nem com as nossas vidas e nem com as de outras pessoas”, diz Carol, entregue à nostalgia. A falta é de tudo: música, amigos, aglomeração, glitters, adereços de cabelo, camisa do bloco, levar o tamborim por todo canto.
Por morar bem perto da região do Dragão do Mar, onde aconteciam os ensaios, Carol sente um vazio atravessar seus dias. Mas ela lembra, como na canção “Swing de Campo Grande”, dos Novos Baianos, que “a carne é de carnaval e o coração é igual”. “A gente está aqui no aguardo para poder voltar”.
Siga os blocos nas redes sociais