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O padre e a pedra
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

O padre e a pedra

Tipo Crônica

No meio do caminho havia uma pedra. Pedras, aliás, muitas delas. Sob o viaduto de concreto, com sua essência de pedra, colocaram pedras para que os que sofrem sem ter um lugar para chamar de seu, como pedras rolantes, se vissem privados do seu sono de pedra. Os que deveriam usar a pedra para o lenitivo do seu semelhante, empregaram-na para maltratá-lo e afastá-lo do convívio dos seus iguais. Uma arquitetura que desaloja, expulsa e fere com seus leitos de faquir em pedras pontiagudas, suas marquises-chuveiros, seus bancos de espinhos de aço, suas muitas pontas apontadas para um céu sujo. Uma arquitetura do medo e da violência que deveria envergonhar quem a faz e a defende como escudo. A casa como a cidade, a cidade como a casa, ainda?

Mas também nesse caminho de pedra dura havia um padre. Um padre de coração doce e de vontade de pedra. Um padre cujo Jesus é generoso e compassivo, muitíssimo diferente desse jesus (assim mesmo, em minúsculas) que é uma pedra no sapato da verdadeira fé. Mesmo que lhe atirassem pedras, e foram muitas, com o padre não ficou pedra sobre pedra. Talvez nunca a oração proferida por Ele a Pedro tenha feito tanto sentido: "Tu és pedra e sobre essa pedra edificarei a minha igreja". Com seu gesto, o padre colocou uma pedra sobre o assunto, triturando a pedra que doía em nosso peito. Que as pedras que removeu possam servir de pavimento a uma via onde possamos caminhar juntos, nós, numa renovada utopia. Que pedra preciosa, esse padre...

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E ele, de dentro de sua humildade, nos informa: “A gente teima em procurar Deus na igreja quando ele está mesmo é debaixo da ponte”. Sob o sol do meio-dia, no Joaquim Távora, penso nos que sofrem, nos que fazem sofrer e nos que acendem a vela no breu. Há pessoas que nascem com a sina de serem chicoteadas pela vida desde que saem do útero da mãe. Outras há que gozam com o sofrimento alheio, fazendo de tudo para ampliar o penar do próximo. O espiritismo, pela lei do carma, coloca os dois tipos na mesma balança: se estás sofrendo é porque cometeste muitos males em tuas outras encarnações e agora, espírito danado, pagarás. Não penso assim; o existir não é um banco com promissórias a serem cobradas leoninamente nesta ou em outra vida, não.

Aliás, quem tiver certeza, para além da mera crença, dessa ou de outras questões assemelhadas, que dê o primeiro grito. Criado num lar católico, uma vez cri, até construir-me agnóstico. Quem já creu e descreu, como eu, sabe do que estou falando. Mas, caros e caras, o que me importa é o bom exemplo, parta do crente, do que não crê nem duvida ou do ateu. A ação firme e decidida em prol do irmão, praticada sem qualquer expectativa de retorno, fala-me à beça. Alguém que sai dos seus cuidados, da sua gostosa zona de conforto, para dar a mão a quem precisa, aos que pouco ou nada têm, é, nestes tempos de pandêmica hipocrisia religiosa, voltada a orações de autoperdão, um vento de mudança. Volto ao padre, ao ínclito padre da pedra: um homem, nada mais.

Foto do Romeu Duarte

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