Elis Regina viveu apenas 36 anos, mas a intensidade da trajetória da artista atravessa décadas e segue reverberando. Além das canções que eternizou, a cantora se fez perene pelas opiniões fortes e pelo engajamento em causas políticas e sociais. Na luta pela redemocratização durante a ditadura militar, por exemplo, fez show para arrecadar verbas para a campanha do então candidato a senador Fernando Henrique Cardoso, em 1978, e também ajudou Luiz Inácio Lula da Silva e seus companheiros na greve geral dos metalúrgicos da região do ABC paulista, em 1979. Na semana que marca os 76 anos de nascimento da artista, o Vida&Arte reflete sobre a trajetória da artista — que caminhou na contramão da lógica do “cancelamento” que impera hoje.
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“Elis era uma pessoa profundamente inteligente. Ela tinha uma visão realmente ampla e conseguia sacar para onde as coisas estavam indo”, destaca o produtor musical João Marcello Bôscoli, filho mais velho da “Pimentinha” (apelido que a cantora ganhou de Vinicius de Moraes). “Ela defendia valores incontestáveis, falava sobre o direito das pessoas de terem uma opinião, de democracia, da questão da mulher não ser tratada como um ser humano de uma categoria inferior… Mas, hoje, o pessoal está muito louco. Defender árvore virou uma coisa discutível. Isso me assusta”, reflete Bôscoli, apontando que a ator de discordar de um artista leva hoje a uma “espécie de linchamento”.
“Elis nunca seria uma fada sensata”, elabora o sociólogo e jornalista Renato Contente, autor de “Não se assuste, pessoa! — As personas políticas de Gal Costa e Elis Regina na ditadura militar”. O pesquisador aponta, entretanto, a importância de localizar os fatos no contexto histórico e não apenas dentro da “dinâmica atual” de interpretação. Renato pontua que, para além do papel na música, Elis trazia à tona importantes reflexões sobre o País em suas entrevistas. “Ela é uma pessoa muito franca e, quando você é assim, eventualmente você pode ser contraditório. Elis tinha contradições ao longo da carreira dela e isso era exposto. Ela não escondia as contradições”, analisa.
Uma fase de tensionamentos na carreira de Elis ocorreu em 1972, quando a gaúcha fez um show nas Olimpíadas do Exército e também cantou o Hino Nacional em campanha televisiva e radiofônica para marcar os 150 anos da independência do País. Sobre esse momento, Renato destaca ser importante considerar dois pontos: o fato de Elis ter se recusado a cantar o samba “200 prá lá”, de João Nogueira, que celebra uma conquista territorial de milhas no mar durante a ditadura em 1971 e o fato de de ela ter comparado os governantes do Brasil a gorilas em entrevista a jornalistas estrangeiros. “Elis foi realmente coagida a dar um depoimento bem longo ao exército, que durou umas quatro horas, e depois ela foi convidada, bem entre aspas, a cantar nas Olimpíadas do Exército”, conta.
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A aparente proximidade da cantora com o regime militar rendeu muitas críticas na imprensa no inícios dos anos 1970. Pimentinha, porém, virou o jogo. “Tudo deu uma virada de carreira muito importante, pois a Elis começou a pensar o repertório dela, as falas, as ações, voltadas para tentar subverter essa narrativa. Ela passou a ter um pouco mais de controle sobre essa narrativa de que era conivente com a ditadura militar”, afirma Renato. Nesse período, Elis lançou álbuns com letras engajadas como “Falso brilhante” (1975), “Transversal do tempo” (1977) e “Saudade do Brasil” (1980). “Ela financiar a primeira revista feminista do Brasil, ela funda a Associação de Intérpretes e Músicos…” enumera.
“Elis tinha um discurso muito à frente e a gente, enquanto país, caminhou para trás em muitas questões. Enquanto filho da Elis, ouvindo o que ela dizia, não imaginava que em 2021 as discussões que temos ainda sobre as condições da mulher ainda seria sobre equiparação salarial e violência contra as mulheres”, afirma João, apontando que a mãe já falava publicabemente sobre isso há meia década. “ Ela estava atenta ao País com uma inteligência que transcendia o seu ofício. Às vezes parecia uma socióloga falando, uma cientista política”, completa.
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O “cancelamento” de Wilson Simonal também atravessa a trajetória de Elis. O cantor se envolveu com o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e, entre questões com ex-funcionário que foi torturado e acusações de entregar amigos músicos, Simonal perdeu fãs, espaço na mídia e contratos de shows. Apesar da amizade dos dois e do suporte dado pela cantora, Renato pondera que, em entrevista, a artista preferiu não entrar no assunto Simonal. “Elis ficou muito calejada com o que aconteceu com ela. Em vida, Elis foi muito rápida ao mudar a narrativa pública em torno dela nesse assunto da ditadura. Já o Simonal, diante de um fato mais grave, passou a vida inteira tentando ser ‘descancelado’ e não conseguiu”.
Sobre o caso de Simonal, João Marcello pondera: “Tem uma questão humana que é você dar espaço para as pessoas se explicarem. O benefício da dúvida, ouvir o outro lado. É um respeito humano que havia muito na trajetória da Elis”, finaliza.
Presença de Elis
"Fico Feliz de o Brasil não esquecer a Elis. É maravilhoso para a memória da Elis e é ótimo para o Brasil. Ela começou no rádio, foi pra TV, está na internet, mas a mídia dela é a eternidade. Como filho, não poderia estar mais feliz", afirma João Marcello Bôscoli, ao celebrar a presença da artista com sua obra e com os debates que levantou. O produtor cultural evidencia que novos projetos sobre a artista estão a caminho. "Roberto de Oliveira captou 'Elis e Tom' e tem cerca de 7 horas de material (em vídeo), tem outro documentário, da HBO, que vai para mais 50 países pela Santa Rita Filmes. São entrevistas e imagens da Elis através do tempo. Hugo Prata também está preparando um documentário. É um volume muito grande", conta, destacando ainda peça infantil, personagem de animação inspirado na cantora e o relançamento remixado e remasterizado do álbum "Elis", de 1972.
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