A pandemia trouxe adversidades para diversos setores da cultura, como o cinema, o teatro e, também, a música. Devido às medidas restritivas de circulação de pessoas como forma de diminuir a transmissão do novo coronavírus, as apresentações presenciais foram interrompidas oficialmente por vários meses. Assim, profissionais do segmento musical precisaram encontrar outras alternativas para conseguirem renda e, assim, continuarem sendo guiados pela música. Lives transmitidas em redes sociais, por exemplo, se configuraram como caminhos possíveis, mesmo que não tivessem o mesmo impacto de shows presenciais.
Entretanto, é realidade que muitos músicos continuam enfrentando dificuldades em meio à pandemia, mesmo com o auxílio financeiro de R$ 1 mil (dividido em duas parcelas de R$ 500) anunciado para o setor de eventos. Para ajudar músicos cearenses que estão sem trabalho e passam por restrições financeiras e alimentares, por exemplo, o Sindicato dos Músicos Profissionais do Estado do Ceará (Sindimuce) realiza ação para arrecadar cestas básicas a esses profissionais. Entre os contemplados pela ação, estão músicos de longas trajetórias e que trazem a música para seus cotidianos de forma intrínseca.
"Música, para mim, não é apenas uma narrativa poética. É algo bem real"
Se jovens receberam influência de bandas de rock nacionais para seguirem o caminho da música, certamente o baixista, produtor e diretor musical Ananias Gois encontra-se nesse cenário. As rodas de violão que tocavam sucessos de grupos como Legião Urbana e Biquini Cavadão eram presentes em sua vida e, aos 15 anos, começou a se interessar pelo ramo após observar seus amigos apresentando suas habilidades musicais nesses momentos. “Eu não queria ficar de fora daquilo. Se todo mundo tocava, eu também queria tocar”, afirma.
Começou a estudar acordes a partir de pequenas revistas musicais encontradas em bancas. O contato com o contrabaixo veio com o incentivo do seu vizinho, que tinha o instrumento e tocava em uma banda. A curiosidade de Ananias o levou a observá-lo se apresentando e até a receber emprestado o contrabaixo para poder estudar.
Com o tempo, foi diversificando seus gostos musicais. No início, recebeu muita influência de artistas brasileiros, como Djavan e Jota Quest. Depois enveredou para o segmento do jazz ao ouvir George Benson e Marion Brown, momentos em que começou a compor e a “colocar essas influências em forma de música”. Entre outros artistas escutados, estão Michael Jackson, Stevie Wonder e Gilberto Gil.
Em sua carreira profissional, chegou a acompanhar trabalhos do cantor, compositor e produtor Dorgival Dantas, período em que teve “aprendizado muito grande”. A partir dos frutos desses trabalhos com Dantas, Ananias pode ramificar ainda mais sua atuação e participar de grupos como Aviões do Forró e Furacão do Forró. Após tantas experiências nos palcos, parou de tocar em bandas e começou a atuar na “noite de Fortaleza”, se apresentando em bares da Capital.
Ele comenta que, com a chegada mais forte do sertanejo e com mudança de estilos musicais adotados por bares, músicos novos entraram no mercado trabalhando por cachês mais baixos, o que teria acarretado um “recesso financeiro” para músicos da geração de Ananias. Assim, ele migrou para outras áreas, atuando como produtor de vídeos e desenvolvendo o lado da didática ao montar um curso chamado “Harmonia Para Baixistas”. Chegou a ser “salvo várias vezes” com o dinheiro arrecadado com as vendas de apostilas do curso, valores que o ajudavam a comprar comida para se alimentar.
Diante das primeiras restrições de mobilidade social decorrentes do cenário pandêmico no Estado, Ananias encontrou no ambiente virtual uma forma de continuar tratando sobre música em sua rotina. Em suas redes sociais, fez lives “didáticas” com músicos como os baixistas Sérgio Groove e Marcelo Mariano para assuntos teóricos ligados ao meio.
Outra alternativa foi a venda de artigos de futebol de botão, área colecionada por Ananias. Nesse aspecto, o músico afirma que sua noiva o classifica como um “camaleão”, fazendo associação à sua capacidade de se reinventar em diferentes contextos. Produzindo vídeos, lecionando ou se apresentando musicalmente, são diversos os segmentos encontrados pelo contrabaixista.
Entretanto, talvez não só “reinvenção” seja a palavra para caracterizá-lo em meio a adversidades. Diante da principal delas, um termo que se apresenta é o de retomada. Ananias foi diagnosticado com Covid-19 em dezembro e chegou a passar nove dias em um leito de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), precisando do auxílio de respiradores. Teve alta em janeiro e relata que foi uma experiência “assustadora”. Recebeu apoio do Sindimuce não só com as cestas básicas, mas também durante o período de dificuldades hospitalares, gestos pelos quais o baixista demonstra bastante gratidão.
De fato, a música tem grande importância na vida de Ananias. Ele compara a sensação que teve quando ficou internado ao que representa a música para si: “Eu fiquei sem autonomia para respirar. Não conseguia respirar sem a ajuda de aparelhos. Acredito que a música, para mim, não é apenas uma narrativa poética. É algo bem real. Acho que se eu ficasse sem música hoje seria o mesmo que perder a autonomia de respirar, pode ter certeza”.
"Metade de mim é música e a outra metade também"
Foi aos seis anos de idade que a violonista Mona Mendes, da banda “Eva Cidreira” e do movimento “SambaDelas”, deu seus primeiros passos na música. O encanto pelo violão começou a tomar forma concreta a partir da observação da artista sobre as apresentações realizadas por um vizinho, que tocava o instrumento em uma igreja. Assim, começou a ter aulas e com seis meses de aprendizado já tocava também em missas.
Além de violão, Mona faz uso de sua voz para preencher musicalmente os ambientes em que se apresenta, mas ela afirma que prefere ser instrumentista. A artista também toca guitarra, baixo, cavaco, escaleta e chegou a ter três anos de aulas de violino. Sua participação na cena musical fortalezense ocorre desde os 16 anos de idade. Antes da pandemia, tocava de terça-feira a domingo, chegando a se apresentar em até três turnos de um mesmo dia.
Como principais referências musicais, ela destaca a Música Popular Brasileira (MPB) e cantoras como Adriana Calcanhoto, Roberta Sá e Marisa Monte. Assim como a MPB está presente em sua vida, também faz parte de sua rotina o samba.
O primeiro contato veio a partir do convite para tocar no grupo “Samba de Rosas”, constituído só por mulheres. Desde então, o gênero musical não saiu mais de perto de Mona. Para mesclar os dois estilos, participa do projeto “Essas Mulheres” junto com sua esposa, a cantora Patrícia Trajano.
Com a pandemia, o cenário da virtualidade se tornou real tanto para Mona quanto para Patrícia. Elas aderiram ao formato de lives para arrecadar dinheiro e assim tentar minimizar os impactos financeiros decorrentes desse período.
Mona Mendes relata que atravessar a pandemia tem sido difícil. Também professora de música, interrompeu suas aulas com a pausa de atividades enfrentada por escolas. Pensando em uma alternativa para contornar essas adversidades, começou a vender bolos, mas parou devido à liberação de apresentações de músicos a partir de setembro do ano passado e chegou até a dar aulas particulares de violão. Entretanto, com novas medidas restritivas, teve que interromper novamente suas atividades.
Nesse movimento de cenários incertos, a violonista comenta sobre como tem se reinventado durante esse período: “Me reinventei demais mesmo. Nós precisamos nos reinventar para podermos viver, porque se formos esperar auxílios governamentais que sirvam para pagar todas as contas que chegam, não tem como”. Em meio a isso, Mona Mendes também foi beneficiada pela campanha de arrecadação de cestas básicas realizada pelo Sindimuce. A instrumentista relata que a ação foi muito importante, pois mora com três crianças e enfrentava dificuldades financeiras.
Para as pessoas que desejam seguir no ramo da música, os conselhos de Mona se traduzem em enfrentar as adversidades e resistir. “Se você quer isso para a sua vida, meta as caras mesmo, vá em frente. Você enfrentará muitos obstáculos e às vezes terá vontade de desistir, mas vale muito a pena”, enfatiza.
A música na vida de Mona não se resume em apenas uma frente ou situação. Ela se constitui em “refúgio” e em “escape” para a instrumentista, participando de praticamente todas as suas jornadas. Mona logo diz: se está triste, vai tocar, se está feliz, vai tocar, se quer se divertir, vai tocar também. Assim, a música tem bastante importância e domina por completo a violonista. “Metade de mim é música e a outra metade também”, destaca.
"O que o músico mais gosta de fazer é tocar"
“Sinceramente, não sei descrever a importância da música na minha vida. Não sei mensurar o prazer de tocar”. Esse depoimento pertence ao baterista Robinho Patricio, que integra banda junto com seu irmão, o cantor e compositor Renato Ravel. Músico desde 1996, Robinho iniciou sua trajetória no ramo com uma banda no colégio onde estudava.
A experiência musical começou com sua atuação como percussionista, chegando a também desenvolver seu lado como cantor. Com passagem pelo grupo “Sabor de Queijo”, Robinho também participou inicialmente da banda “Forró Sacode”. Entretanto, foi a partir da decisão de seu irmão de fazer carreira solo que ele pode se tornar baterista. Os dois resolveram seguir um projeto musical juntos.
Profissionalmente, Robinho Patricio toca principalmente forró e sertanejo. Como referências musicais, ele cita bateristas como Maurício Mendes, Carlos Bala, que já trabalhou com Djavan, Zé Maria, que foi baterista do Brasas do Forró, e também Riquelme, ex-integrante do Aviões do Forró. Robinho gosta de tocar “todos os estilos”, contemplando também MPB e “músicas românticas internacionais”. Nesse sentido, ele aponta para a versatilidade que o músico precisa ter em sua profissão para tocar também “o que o povo quer escutar”.
Antes da pandemia, o baterista tinha a rotina de se apresentar de quinta-feira a domingo na cena musical de Fortaleza, um processo que ele associa com o sentimento de “felicidade”: “Era aquela felicidade, porque o que nós mais gostamos de fazer é tocar. Nós esperávamos o fim de semana com muitas expectativas para poder trabalhar”.
Como vários outros artistas, ele passou a se apresentar virtualmente durante a pandemia, com objetivo principal de arrecadar alimentos para doações. Ele comenta que tem sido “muito difícil” enfrentar esse período devido às restrições de apresentações presenciais. Para complementar a sua renda, há alguns anos optou por ser motorista de aplicativo.
O baterista afirma que consegue ocupar bastante seu tempo, mas destaca o sentimento que tem diante desse cenário: “É muito difícil nós termos uma profissão que gostamos de exercê-la principalmente mas não podermos”.
Robinho comenta que foi “muito gratificante” receber as doações de cestas básicas vindas da campanha do Sindimuce. Ex-diretor do sindicato, chegou a trabalhar em outras campanhas similares. Para ele, “não é apenas uma ajuda simbólica, pois todos os músicos estão precisando”.
Doações para cestas básicas
Cadastramento para músicos: no formulário disponibilizado pelo sindicato no Instagram
Dados Sindimuce (doações a partir de R$ 1):
Pix: sindimuce@gmail.com
Banco: Caixa Econômica
Agência: 1887
Operação: 003 (pessoa jurídica) Conta: 2493-8.
CNPJ: 07.358.856/0001-82.
Mais informações: @sindimuce