Na quarta série do ensino fundamental, em meio à quentura do município cearense de Jaguaribe, Rafaela Maia Magalhães encontrou coragem nas peças teatrais escolares. Dia das Mães, trabalho final da disciplina de Português, qualquer data especial ganhava encenação dos alunos. Foco de luz: a criança escorraçada pelos colegas por ser "um menino afeminado" e pobre alcançava vida nos palcos improvisados. Nasceu ali, entre insultos e aulas, a artista Faela Maya. Atriz, diretora, roteirista, editora e o que mais se possa imaginar, Faela é criadora da webnovela "Pobreza Brasil" — produção audiovisual que conquistou mais de 300 mil espectadores e se tornou fenômeno nas redes digitais.
"Eu nunca fui uma criança sociável, nunca fui popular na escola, sempre sofri bullying porque tive uma infância muito carente, muito humilde", relembra Faela. "A minha mãe era empregada doméstica, então as roupas que eu usava na escola eram roupas dos filhos do patrão… Eu usava roupas de homens que vestiam 42, amarrava com um cordão para segurar. Mas quando eu participava de peças teatrais, as pessoas elogiavam e gostavam — então desde pequena eu via na arte uma forma de ser aceita, mesmo que depois que acabasse a peça e a luz se apagasse, todo o assédio voltasse. Mas eu nunca me deixei frustrar e nem me abater por isso".
Mulher trans numa cidade interiorana ainda muito conservadora, Faela decidiu correr o mundo e tentar a sorte sob os holofotes cariocas. "Eu fui professora do Programa Mais Educação em Jaguaribe, dei curso de teatro e depois de cinema e audiovisual, de cineclube. No final de 2014, decidi que queria fazer teatro numa universidade federal. Inicialmente, eu ia estudar no Rio de Janeiro, pensando naquele glamour, nas novelas... Pesquisando, eu descobri a Casa do Estudante do Ceará, que oferecia moradia gratuita e alimentação. Como eu não tinha como me bancar no Rio de Janeiro, decidi tentar em Fortaleza mesmo", explica. Na capital cearense, a jovem ingressou no curso de Teatro da Universidade Federal do Ceará.
"Mas a realidade bate na porta da gente, né? Eu não via muitas perspectivas de trabalho no teatro...", lamenta Faela. Comprometida em melhorar as condições financeiras da família, a jaguaribana trocou o sonho das artes cênicas pelo curso de Psicologia. Entretanto, desempregada e sem dinheiro para continuar em Fortaleza, trancou a faculdade e voltou para a cidade natal cinco anos após a partida. Na impossibilidade de viver com apenas R$30,00 por mês, Faela se preparava para prestar um concurso público quando a pandemia de Covid-19 adiou os planos.
Webnovela com mais de 35 episódios publicados no YouTube e no Facebook, "Pobreza Brasil" surgiu como distração para Faela e amigos em meio ao cenário incerto. O sucesso começou ainda com o vídeo de "Barzinho Clandestino", que soma quase 8 milhões de visualizações. No trama, amigas solteiras furam a quarentena para passar o Dia dos Namorados juntas e acabam bêbadas. Gravado no quintal, entre galinhas e roupas no varal, o vídeo viralizou e possibilitou o investimento no sonho antigo: escrever novelas como Janete Clair e Fernando Gaitán.
Confira o primeiro capítulo de "Pobreza Brasil":
"Eu comecei a fazer a novela só para os stories do Instagram. Até então, era uma coisa muito despretensiosa, era só pra gerar algum tipo de conteúdo — costumo dizer que eu era uma blogueira fracassada. Eu flopava, sabe?", ri-se Faela. "Para eu conseguir chegar a mil seguidores, foi mais de um ano…. Um dia, eu decidi compilar esses stories e lançar como capítulos da novela. Comecei a gravar para me divertir mesmo, só que eu tinha esse desejo de fazer algo que fosse mais constante porque eu tinha muitas ideias na minha cabeça". Com mais de 44,7 milhões de visualizações nos canais oficiais de Faela, a novela começou a monetizar.
A trama acompanha a história de Teresa do Curralinho (Faela Maya), uma mãe solo e empregada doméstica que sonha em ter a carteira assinada, conquistar a casa própria e dar uma vida melhor para a sarcástica e divertida filha Tronco (Joelma Ferreira). A protagonista enfrenta as vilanias de Margô (Yslla Magalhães) e Altiva (Letícia Pereira), que odeiam pobres. No cenário ambientado em casa, com elementos simples, o elenco composto por pessoas da família e vizinhos de Faela encena um humor leve e com refinada crítica social. "Eu tenho um senso crítico muito apurado, sempre gosto de questionar. Às vezes, as pessoas torcem o nariz para uma crítica mais seca, não querem ver porque acham que ofende o lugar delas. Política é um campo muito aflorado, então sinto que é preciso tirar um pouco esse véu do fanatismo e as pessoas entrarem na crítica de forma mais suave. Tem uma crítica, mas você assiste e dá gargalhada", defende Faela.
"Pobreza Brasil" é uma novela de uma mulher só: "Eu praticamente faço tudo: gravo, dirijo, atuo, dou instrução na cena, edito, crio capa, programo, posto…", enumera Faela. O processo criativo da artista passa por muitas notas, fichamentos e roteiros escritos à mão, num caderninho inseparável. "Primeiro, penso como eu quero os capítulos. Depois, ficho as ideias e vou criando cena por cena, muito rabisco mesmo. Quando eu sento para escrever, as falas e as tramas vão se desenhando. O roteiro que é gravado, às vezes, também é diferente do inicial porque eu escrevo muito rápido. Na hora de gravar, eu respiro. Ainda tem o processo da edição, porque às vezes uma cena pode mudar de lugar", compartilha.
Ao espectador que acompanha semanalmente a webnovela, Faela interpreta com muita comédia a própria vida. "Para criar Teresa eu me baseei muito na minha mãe, Maria Maia Magalhães Lopes. Ela tem uma índole muito sólida, não se deixa corromper, acredita na honestidade, nos valores que são fundamentais para a sociedade. Eu me baseei muito nela também por ter me criado sozinha, sem um pai, como Teresa também cria Tronco sozinha. Já a Tronco eu acredito seja um easter egg de mim mesma. Para me defender dessas questões de bullying quando eu era criança, eu nunca nunca abaixei a cabeça, sempre tinha uma resposta porque não queria aceitar que as pessoas me tratassem daquela forma. Eu trago na Tronco uma coisa um pouco minha".
Agora, Faela dedica-se a escrever um livro infantojuvenil e roteirizar uma minissérie. "Quando eu fazia teatro, eu me lembro muito de uma situação que aconteceu durante uma aula de cena. O professor passou um exercício para eu fazer com um colega meu, era algo bem romântico, mas o professor parou e me corrigiu dizendo pessoas como eu não tinham esse tipo de sentimento, que pessoas como eu só eram capazes de afetos rudes e grosseiros. Eu fiquei chocada, mas a arte também me acolheu e me deu possibilidades. Através do meu humor, um humor mais regional, eu quis humanizar a Rafaela".