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Filme "Currais" aborda campos de concentração no Ceará na década de 1930
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Filme "Currais" aborda campos de concentração no Ceará na década de 1930

|CEARÁ|Lançamento de "Currais" nas plataformas digitais abre debate sobre registros dos campos de concentração de 1932
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Foto: Divulgação "Currais" explora o impacto da seca de 1932

"Na época atual, quem se interna pelos sertões cearenses têm a necessidade de preparar convenientemente o espírito para assistir a sucessão dos quadros dolorosos da seca que assola o nordeste brasileiro", imprimia o primeiro parágrafo do texto de manchete do jornal O POVO, veiculado em 11 de janeiro de 1932. A matéria relata o aumento de retirantes causado pelo período de estiagem. Os “flagelados da seca” iam aos centros mais populosos na busca por condições mínimas de vida e, muitas vezes, acabavam o percurso em um dos sete campos de concentração espalhados pelo Ceará. 

Situados em Fortaleza, Quixeramobim, Senador Pompeu, Cariús, Ipu e Crato, os campos eram localizados perto das linhas férreas para impedir que os retirantes chegassem na Capital. Apesar de não terem sido criados para extermínio, os locais foram cenários de milhares de mortes causadas por fome, sede e doenças. Aqueles que sobreviveram não escaparam do apagamento de suas histórias. Algumas vivências foram documentadas no filme “Currais”, lançado em 2019 e disponível nas plataformas digitais a partir de quinta-feira, 1º. O filme compõe o catálogo da Apple TV+, Google Play, iTunes, YouTube Filmes, Vivo, Now e Looke.

O longa, dirigido por Sabina Colares e David Aguiar, reflete a ação do Estado na contenção das famílias atingidas pela seca da década de 30 do século passado. A obra, vencedora de prêmios da Abraccine e do Cine Ceará, costura relatos reais em uma narrativa ficcional. O assunto é um ponto de partida para entender as crises da formação da cidade de Fortaleza e "pensar as permanências históricas que continuam a flagelar o nosso Estado", destaca o diretor.

A busca se mostrou um movimento constante na pesquisa e temática central no enredo. “O filme fala de busca porque é inerente a esse tema, o apagamento proposital é a própria história”, frisa Sabina. As lacunas dos relatos são contornadas pela construção da narrativa em camadas de linguagem, como a documental, fotográfica e sonora, para conseguir retratar uma realidade fadada ao esquecimento.

"No Ceará os campos de concentração tem ligação com as questões de higiene social, o sanitarismo público", explica o historiador Márcio Michiles. Os campos são consequências da seca de 1877, quando o fluxo migratório fez com que Fortaleza se tornasse a sétima cidade urbana em tamanho no Brasil. Desde então, os flagelados eram confinados pelo governo. Em 1932, o modelo já havia se consolidado e contabilizava, de acordo com registros da época, mais de 73.918 pessoas.

Construção do presente

Segundo o livro “Isolamento e Poder: Fortaleza e os Campos de Concentração na Seca de 1932”, escrito por Kênia Sousa Rios, os campos de concentração “ funcionavam como uma prisão”. Os flagelados, sem a assistência prometida, só podiam se deslocar para o trabalho, onde eram explorados como mão-de-obra na construção de vias, ruas e praças da cidade. Por isso, os retirantes nomearam os campos como “curral do Governo”, em uma referência ao processo de encurralar o gado na área rural para não fugir. “O campo não era, portanto, um lugar para gente”, explica uma passagem da obra.

A publicação fundamentou a produção de registros artísticos construídos a partir destas narrativas, como cordéis, longas-metragens, curtas-metragens, peças, intervenções e trabalhos acadêmicos. Alguns exemplos são a montagem do espetáculo “Curral Grande”, do coletivo baiano Ponto Zero, e de “Trinta e Duas”, produzido em 2017 pelo Curso de Princípios Básicos de Teatro (CPBT) do Theatro José de Alencar.

A dramaturga de “Trinta e Duas”, Rosana Braga Reis, encontrou o tema durante pesquisa realizada em equipe. A escolha foi baseada no seguinte seguinte tripé temático: estrutura de poder, marginalização e inimigo público. A peça trilha a história de Eunice, flagelada do campo de concentração do "Urubu", e Marly, responsável pelos acordos entre o poder público e privado na especulação imobiliária.

Este resgate da realidade dos campos de concentração requer espaço nos debates sobre a história do Ceará e o registro dos relatos amplia o entendimento acerca da construção de Fortaleza e do funcionamento das estratégias de poder. As vivências romantizadas e apagadas dos retirantes, de acordo com David Aguiar, são histórias vivas que falam do presente.

 

Onde assistir:

Apple TV+, Google Play, iTunes, YouTube Filmes, Vivo, Now e Looke.

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