Lá pelas tantas, o escritor Ronaldo Correia de Brito conta de uma vez que havia percorrido novamente o caminho de casa, indo de Saboeiro, no interior do Ceará, até cidade próxima, unicamente para perguntar a um homem quantas arrobas de algodão colhia nos bons tempos. À resposta do trabalhador, que lhe dissera prontamente "doze", o narrador acrescenta: "Palavras semeadas nas pedras".
"A arte de torrar café: narrativas além da ficção", recém-lançado pela editora Objetiva, cultiva essa memória que "retorna ao arcaico", como revela o autor de "Galileia" e "Dora sem véu". As 55 histórias reunidas, peças de tamanho e natureza variadas, compõem uma paisagem geográfica e humana de um tempo, um passado, uma gente.
Recuo histórico, mas sempre coalhado de um presente. Porque esse sertão incerto de que fala Ronaldo não é o mesmo sertão de Guimarães Rosa, Rachel de Queiroz ou Ariano Suassuna. É um sertão deslocado e feito de "ruína e periferia".
Do Recife à França, do Cariri cearense ao município natal, Ronaldo empreende viagem aos temas que demarcam as fronteiras de seu território literário: o deslocamento, o conflito desse homem apanhado numa encruzilhada entre o rural e o urbano - nem totalmente adaptado às cidades, nem o mesmo agricultor de um século atrás.
O corpo da obra resulta de uma peneirada em 600 textos, conta o escritor em conversa com O POVO em março passado. Falando da capital pernambucana, onde mora, Ronaldo Correia de Brito declara que sua "intenção foi a de criar um novo olhar sobre esse lugar imaginário que é o sertão".
Para ele, não mais o sertão cristalizado por décadas de tradição literária, esse cujos pontos cardeais são conhecidos (o vaqueiro, a rezadeira, o jagunço), mas um "um marco do que passou a significar esse sertão incerto".
Sertão incerto é sertão que falta e escapa nesse trabalho de rememória. Na perspectiva de quem sempre escreve como um observador ("sou um voyeur, sinto mais prazer em sentar e olhar o que está acontecendo"), o cearense faz desfilarem cenas que se aproximam do conto e da crônica, habitando um entrelugar que desafia gênero.
Como o conto-crônica cuja passagem reapresenta a viagem do autor-narrador pelos caminhos conhecidos da casa. As mesmas estradas de terra batida, o silêncio, o sol causticante, o Juazeiro verdejando em meio ao cinza do estirão de terra. E o diálogo que o arremata, seguindo-se do mistério e das palavras deitadas na terra.
No conjunto das peças, o autor está indo a algum lugar, num trânsito que combina presente e passado, lembrança e invenção. Ao material, Ronaldo dá feitio de descoberta, como se ele mesmo cavasse com mãos habilidosas para, nessa procura, flagrar o que talvez tenha deixado para trás quando se mudou, quando resolveu ele mesmo fazer o voo da arribação.
Daí a temática predominante - o trânsito, o fluxo, a partida ou a chegada -, reconhecida por ele mesmo como um tópico onipresente em toda a sua obra, dos livros de contos aos romances. "Sou uma pessoa que se preocupou sempre com deslocamentos, talvez pelo fato de ser cearense, de ser descendente de judeus. Somos um povo sempre em deslocamento. A seca gerou instabilidade do lugar. Sou muito arraigadamente cearense nessa questão", decifra.
Ainda que o sertão e o desencontro não estejam explicitados, advinham-se no banal de uma conversa. Como na narrativa em que o autor trata da visita inesperada de um amigo a quem havia muito não via. Recebe-o no aeroporto do Recife e hospeda-o em casa. No caminho, estranham-se. Ao narrador aborrece sobretudo a visão eurocêntrica e algo debochada do Brasil e de Pernambuco.
É cena ligeira, contada em poucas palavras, mas na qual o escritor consegue deixar claro o choque de mundos, a visão do antigo e do pretensamente novo, as arestas que se alimentam no súbito partilhamento desses universos: o quase-estrangeiro, brasileiro já aclimatado em Paris, o olhar tão alheio, e o quase-nativo, o homem local que recusa essa visada colonizada e depreciativa.
Eis o substrato dessa preciosa coleção de narrativas enfeixadas em "A arte de torrar café". Em cada uma, Ronaldo Correia de Brito refunda o sertão de sua meninice, de sua memória e experiência, um sertão-mundo que é ruína e cidade, que é hoje, mas também ontem. E que subsiste a tudo, presentifica-se em tudo, ainda que se fale de Carnaval ou de uma metrópole perdida num velho continente.
A Arte de Torrar Café
De Ronaldo Correia de Brito
Editora Objetiva
200 páginas
Quanto: R$ 49,90