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80 anos de teatro: Nelson Rodrigues explode a família brasileira
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80 anos de teatro: Nelson Rodrigues explode a família brasileira

Continuando série sobre o autor que mudou os rumos da dramaturgia nacional, Vida&Arte joga luz nos temas controversos que confrontaram o conservadorismo brasileiro
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As obras de Nelson Rodrigues tiveram dezenas de adaptações para a televisão e para o cinema (Foto: ARQUIVO/ AE)
Foto: ARQUIVO/ AE As obras de Nelson Rodrigues tiveram dezenas de adaptações para a televisão e para o cinema

As narrativas do teatrólogo Nelson Rodrigues evidenciam o que a sociedade há muito tempo tenta esconder. São assuntos nebulosos, encobertos no cotidiano: o machismo, a violência psicológica, o estupro, o incesto, o adultério, o racismo, entre outros. "Nelson explode com a família tradicional no sentido mais absoluto da palavra, explode com a hipocrisia. Nos textos, a mulher trai e é feliz sendo adúltera. Ele escancara o desejo que a gente não quer ver. É como se ele virasse nossas vísceras ao contrário e as colocasse à luz", indica a dramaturga e pesquisadora Priscila Gontijo.

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O escritor revelava o que estava em um lugar oculto do inconsciente. "É muito complicado você ver seu lado sombra. Por isso, Nelson Rodrigues sempre vai desagradar. O que ele fazia era muito forte: entrava em um local perigoso da alma, que as pessoas têm medo. Ele explodiu com a família brasileira, com esse Brasil superconservador. Ele desestabiliza o status quo e joga um veneno nele", explicita. "Com seus diálogos, ele deixava espaço para o não dito: as mazelas, as invejas, os ciúmes, os desejos. As pessoas até saíam no meio de suas peças, mas ele não tinha medo. Pelo contrário, quanto mais odiavam, mais ele ia a fundo", ressalta Gontijo.

Para o escritor e pesquisador de letras da Universidade Estadual de Alagoas (Uneal), Moisés Monteiro de Melo Neto, o dramaturgo observa a sociedade e a desdobra em outra realidade. "Ele oferece uma catalisação em textos onde cada parte estilhaça o contexto do todo, recompondo-o em superposições alucinantes. Isto é, cada acontecimento cruza o outro, em simultaneidade, em ritmo frenético. A mãe erotizada, a tia virgem, o pai adúltero e pervertido, os jovens depravados, a entrega explosiva na reunião familiar, os preconceitos explícitos e implícitos. Tudo isso gira em um frenesi extasiante", explica.

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Segundo o professor, os textos de Nelson Rodrigues mergulham no inconsciente e se relacionam entre o real, o simbólico e o imaginário. "O inconsciente coletivo seria a camada mais profunda da psique: um material herdado da humanidade. Nele, todos os humanos são iguais. O escritor busca essa raiz comum, dentre outras coisas, e o faz de maneira um tanto quanto cínica e exagerada na expressão", afirma.

A mulher no teatro do Nelson

Em "Perdoa-me por me traíres" (1957), Judite trai o marido, Gilberto, enquanto ele estava em um manicômio. Quando o homem retorna ao lar, descobre a situação. Mas, ao aceitá-la de novo e ter uma atitude compreensiva, o cunhado interna o irmão e envenena a mulher. Em "Senhora dos Afogados" (1947), Dona Eduarda não está feliz com o marido. Por isso, rompe com a tradição da família e se envolve com o marido de sua filha. Moema, apaixonada pelo pai, induz o patriarca a matar a própria esposa. Já em a "Mulher Sem Pecado", a personagem tem um destino mais positivo: decide fugir com outro homem e abandona o marido obsessivo.

Existe um padrão. "A mulher quer ter liberdade e o que a sociedade faz quando ela busca isso? Mata", ressalta Juliana Nascimento, atriz, diretora e a professora de teatro da Universidade Federal de Fortaleza (UFC). "As personagens mulheres têm um desejo muito forte. Nelson Rodrigues foi taxado de machista, mas, na leitura que eu faço, ele retrata o machismo da sociedade brasileira. Ele coloca, nas personagens mulheres, a questão do desejo, da volúpia, da busca por uma vida sexual feliz", pontua. Em sua tese, "Composições dramatúrgicas das mulheres na obra de Nelson: violência e feminicídio no teatro rodrigueano", a pesquisadora identifica a maneira como as mulheres são punidas a partir do teatro do dramaturgo.

Da mesma maneira que Nelson Rodrigues revela a violência que perpetua na sociedade, ele também cria personagens femininos complexos, que dominam as próprias vontades. "As mulheres são donas da própria libido. Para mim, são as melhores personagens femininas do teatro: são contraditórias, tomam decisões, são impetuosas, enquanto os homens são uns 'bananas'. Dizem que ele era machista, mas não necessariamente. Ele conhecia suas personagens com muita agudeza", explicita a pesquisadora Priscila Gontija.

Joselen Monteiro é psicanalista e estuda a obra de Nelson Rodrigues
Joselen Monteiro é psicanalista e estuda a obra de Nelson Rodrigues

Uma face linda, outra hedionda

Os homens aparecem com duas faces, uma linda e outra hedionda. Frequentemente, em seus textos, o autor dividia os homens em duas metades: santos e canalhas. Mesmo o homem mais vil possuiria uma nuance de santidade, assim como o homem mais virtuoso teria uma face sombria prestes a aflorar. Os personagens masculinos são constantemente marcados por impulsos irrefreáveis e por uma culpa que os atormenta devido aos atos que se viram compelidos a fazer, o que evidencia suas fragilidades. Alguns tipos de homens se repetem na obra de Nelson Rodrigues: há os chefes de família enfraquecidos e arruinados pelos próprios desejos (incestuosos ou transgressores de alguma forma); os filhos incestuosos (seja em relação à mãe, à irmã ou à madrasta) e/ou em posição conflitante em relação ao pai; os maridos traídos (alguns dos quais os próprios atos conduziram ou justificaram a traição da esposa); os castos (que também escondem uma face obscena); e aqueles nos quais a face canalha se sobressai, mas que são redimidos pelo amor.

A psicanalista e doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Fortaleza (UFC), Joselene Monteiro Silva, pesquisa sobre o teatro de Nelson Rodrigues a partir da psicanálise

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