Capoeirista, mulher, mãe, avó. Estes são alguns dos termos que a Mestra Carla Mara, da Associação Zumbi Capoeira, usa para se apresentar. Aos 53 anos de vida e com mais de 35 anos de contato com a expressão cultural, ela atua hoje em diversas frentes de militância - da construção de uma capoeira mais inclusiva a mulheres e pessoas LGTBQI+ à luta por políticas públicas constantes e concretas para a arte que tomou como vida.
“Milito na capoeira já tem alguns anos. Sou feminista, umbandista e tenho a capoeira como meu instrumento de força, porque com ela e a partir dela consegui crescer, ampliar meus sentimentos, compreender mais a forma de viver e a trabalhar o social”, define, de partida. O lugar que Mestra Carla ocupa vem de uma semente plantada quase que sem querer nos idos de 1984, quando ainda era adolescente.
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A família da capoeirista morou em São Paulo por quase uma década e retornou para Fortaleza. Moradora da Parquelândia, ela aproveitava os momentos de socialização com a turma da rua e foi a partir dela que se aproximou da capoeira. Um dia, um amigo de amigos do bairro convidou toda a juventude da região para uma atividade de capoeira. A turma topou, mas somente ela e o irmão mais novo foram de fato à aula.
“Fui fazendo, fui gostando e fui ficando”, resume. No entanto, o aprofundamento do contato esbarrou no que a mestra define como uma “não compreensão” de seu pai. “Ele achava que aquela atividade, que via somente como um esporte, era muito masculina, só era pra homem”, recupera. Então, ela reconta, “ele permitiu que meu irmão ainda fosse, mas eu não”. No entanto, como era mais velha, seguia tendo que levá-lo para o clube onde tomava os ensinamentos - e foi assim que conseguiu participar das aulas escondida do pai.
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“Aos poucos isso foi tomando um espaço maior na minha vida e passei a colocar como prioridade. Aí eu já estava maior de idade e meu pai não disse nada. Não apoiava, mas também não proibia”, afirma. “Ele não tinha a menor compreensão - como eu também não tinha - da profundidade que a capoeira podia oferecer”, entende.
Da atração por uma atividade esportiva que tinha musicalidade, Mestra Carla passou a ter maior contato com as possibilidades culturais e sociais que a capoeira traz. Um momento essencial neste sentido foi quando conheceu a atuação social de Mestre Lula no então Centro Social Virgílio Távora, no bairro Cristo Redentor. “A forma dele de trabalhar nas comunidades me despertou”, explica. O encontro profissional acabou virando pessoal e o casal reforça na AZC uma atmosfera familiar.
Mestra Carla, porém, não deixa de citar com reverência os ancestrais e também outros parceiros de caminhada. “Nossos passos vêm de longe”, atesta. Mestre Zé Renato, Mestre Everaldo, Mestra Vanda e Mestre Ricardo são alguns dos nomes celebrados. “A época de cada um tinha suas lutas e, em proporções diferentes, nós continuamos lutando para resistir”, reforça.
Parte desta resistência vem do trabalho que a AZC faz a partir de pautas sociais. Os mestres da Associação repassam não somente ensinamentos da prática, mas também formações continuadas em não-violência contra a mulher, direitos humanos e cultura de paz, além de aprofundar elementos que compõem a arte como o coco, o jongo e o samba de roda.
Confira o doc "A Fortaleza da Cultura", do Canal FDR, onde a mestra é uma das personagens
Aspectos importantes destas formações de vida são os dois coletivos da AZC que reúnem as mulheres e as pessoas LGBTQI+ da associação e refletem acerca da presença destes grupos na capoeira e na sociedade. Cada discussão interna é ampliada, depois, para a AZC como um todo.
“No começo da minha trajetória, não tinha a menor compreensão da militância que hoje assumo”, lembra a mestra. “Ainda era um ambiente muito mais masculino, de lideranças masculinas. Você via zero referência feminina”, remonta. A partir daí, as mulheres capoeiristas passaram a promover atividades entre elas, como o Congresso das Mulheres Capoeiristas, e conquistar espaços e demandas.
“A partir das discussões do Congresso, a gente abre o coletivo LGBTQI+ porque também houve muita provocação nessas discussões. Ele surge, também, de uma angústia minha, que tenho um irmão gay, que já convive com seu companheiro há mais de 15 anos. Se meu pai não me deixava treinar, imagina aceitar isso”, reflete. “Eu via essas meninas e meninos chegando, via algumas falas que me torciam a alma. Não podia deixar que o que vivenciei com a minha família acontecesse no meu ambiente de trabalho”, avança.
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Além das trincheiras sociais, outra luta diária é a das políticas públicas. “Determinados locais de poder, instituições importantes, precisam ouvir. São espaços em que a gente não pode deixar de estar falando o que a capoeira possibilita”, afirma. Atualmente, ela participa do Fórum da Capoeira do Estado do Ceará e articula representação junto à Secretaria da Cultura do Estado no Comitê de Expressões Culturais Afro-Brasileiras.
“Infelizmente a política pública não é continuada. É de gestão, de líderes. Então os projetos vão e voltam, mas a gente continua”, aponta. Apesar de cada desafio, a relação com a capoeira é de gratidão. “Capoeira pra mim é minha vida, minha forma de pensar, é como eu acredito. Mestre Lula tem uma frase que diz: ‘se eu fizer o que fizer, ainda não vou conseguir retribuir o que a capoeira fez pela minha vida’. Faço das palavras dele as minhas”, divide.
“A capoeira me deu muito. Sou extremamente grata pela oportunidade. Entrei nessa arte para conhecer, saber o que era. Quando despertei a possibilidade de poder ajudar, trabalhar com a comunidade, trabalhar o social, compreendi o poder que isso tinha. Meu aprendizado de vida é dentro da capoeira”, finaliza.
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