"Eu me chamo Júlia Terra e não acredito no amor", escreve a personagem de "Pequena coreografia do adeus" (Cia das Letras), novo romance da escritora paulistana Aline Bei, 34. Pré-adolescente, Júlia é atravessada pela separação dos pais e as transformações do próprio corpo, a mudança no ambiente doméstico, o sofrimento da mãe e o recomeço forçado de vida.
O livro a acompanha até o início da fase adulta, cartografando as dificuldades e angústias que a seguem desde a meninice e expondo, na dicção característica da narrativa, os impasses de sua trajetória.
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Autora do premiado "O peso do pássaro morto" (editora Nós), Bei volta a explorar um assunto que lhe é caro: as relações familiares e suas marcas nos indivíduos, que carregarão consigo cicatrizes de episódios dolorosos.
Agora, a narradora faz uso do recurso do diário, no qual Júlia, aspirante a escritora, começa a registrar impressões sobre a vida em sobressalto e o sofrimento materno, que se origina numa recusa da separação e da rejeição, dois temas que ecoam os trabalhos de Elena Ferrante, sobretudo "Dias de abandono" e a tetratologia napolitana.
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"Às vezes, eu sinto pena da minha mãe. Todo lugar que eu vou, as pessoas falam que eu sou a cara dela. É um saco, eu fico com vontade de chutar a boca de quem diz isso", Júlia anota num trecho, acrescentando em seguida: "Queria ser mais parecida com o meu pai, ele não tem a raiva que a minha mãe tem nos olhos".
A história segue nesse diapasão pendular. A voz da menina já precocemente machucada expõe parte da tensão do livro e anuncia a trama e as sucessivas tentativas de Júlia de equilibrar-se, falhando em se desfazer dessa memória, purgando o embaraço que esse evento imprime a seu futuro.
Na gramática própria de Bei, esse enredo se torna ainda mais próximo do tumultuado cotidiano afetivo de Júlia. Assim como em "O pássaro morto", a escritora corta sua linguagem em versos, obtendo um efeito que potencializa os discursos e acentua os seus efeitos.
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A escrita desmonta a prosa habitual e seu encadeamento previsível. Sem métrica, clivado por oralidade e musicalidade, "Pequena coreografia..." dobra-se nesse abismo de linguagem construída a partir dos cacos que a personagem tenta recompor à medida que busca organizar para si um presente e um futuro.
Júlia ama o pai, que se foi, mas não quer se confundir com a mãe, que ficou - arroga-se a vida particular, da qual pretende se apoderar, mas sem deixar de entender que existem os elos indissolúveis que a atam ao passado, e, nesse passado, ao ambiente doméstico saturado do ressentimento que é subproduto da separação.
Autora do premiado 'O peso do pássaro morto' (editora Nós), Bei volta a explorar um assunto que lhe é caro: as relações familiares e suas marcas nos indivíduos
O resultado é um romance que faz desfilarem personagens e seus dramas, como num teatro de fracassos e tentativas de convivência com os erros.
A referência ao teatro não é casual. Também atriz, Aline Bei costuma aproximar a sua escrita da caixa cênica e suas criações, da atuação de atores e atrizes, fugindo da mera busca de uma representação realista.
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"Eu fui muito influenciada pelo teatro, pela atriz que fui e sinto que ainda sou dentro de mim. Meu texto tem um apelo muito oral, gosto muito quando chego num determinado momento de gravar o texto, pra sentir a musicalidade da cena, pra saber se as palavras cabem na minha boca", conta a autora em entrevista ao O POVO por videoconferência.
Mas qual é exatamente a influência do teatro na obra?
"O teatro me atravessa nesse sentido e também na plasticidade da folha", descreve Bei. "Meu jeito de ocupar o espaço na página é sempre um jeito de quem olha de cima a história".
Para a escritora, o romance agora lançado, o primeiro por uma grande editora, tem muito apelo do palco. "Sempre penso na página como um palco e nos meus personagens como atores. Imagino sempre que meu livro acontece na caixa preta do teatro, num tempo/espaço suspenso", explica.
Bei complementa: "Se eu pensasse que são seres humanos no mundo, seria mais cuidadosa, não levaria eles a lugares que eu levo".
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"Pequena coreografia..." constitui esse esforço de ficcionalização a partir do teatro, pensando nas pessoas como atores e na história como roteiro improvisado, numa cadência poética, mas que não se confunde com poesia. É de uma outra linguagem que a escritora buscou falar.
Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela UFC
Pequena coreografia do adeus
Aline Bei
Cia das Letras
264 páginas
Quanto: R$ 49,90
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