Entre a boca da noite e a madrugada, na hora aflita da dor, o Teatro da Praia desabou. Às 3h30 desta quinta-feira, 27, o ator, diretor e produtor cultural Carri Costa foi acordado pelo estrondo do teto vindo abaixo. "Eu moro nos fundos do teatro e estava dormindo quando ouvi o barulho. Desci pela porta e vi a poeira... Precisei esperar aquela poeira baixar pra ver o que houve: um estrago muito grande", relata o fundador do Teatro da Praia. Equipamento cultural criado em 1993 ao número 662 da Rua José Avelino, na Praia de Iracema, o espaço de difusão das artes cênicas perdeu o palco entre cacos de telhas e pedaços de madeira. "Não caiu só o telhado, a ripa. Caiu a ficha de muita coisa. Caiu um monte de coisa para mim…", lamenta Carri.
O galpão, que data da década de 1930, apresentava fragilidades estruturais profundas — situação exposta por Carri nas redes sociais ao longo dos últimos anos. A fachada do espaço segue intacta, mas o teto cedeu acima do palco que já formou e recebeu grandes nomes das artes cênicas cearenses. "A gente conseguiu fazer, em janeiro de 2021, uma geral em toda a estrutura da arquibancada e também consertar o telhado. Essa região do palco ainda estava intacta, tinha telha colonial", explica.
"Com os anos, a gente foi reformando o que dava, mas não tinha grana para ajeitar tudo e acabou colapsando. Eu sempre alertei sobre a estrutura e também pedi apoio ao poder público, que é quem melhor poderia trabalhar isso com a gente. Como eu conseguiria fazer a manutenção de um espaço desse? Com o que recebemos de bilheteria? Os jornais são testemunhas disso, do quanto que eu falei. Falei muitas vezes da importância do poder público ser coparticipe. O Teatro da Praia é da Cidade, é para a Cidade", continua o artista.
Há quase três décadas, o Teatro da Praia promove arte de forma “democrática” e “progressista” para a população cearense. Em um ambiente “inóspito” no começo, como destaca Carri, o equipamento busca alterar a dinâmica do Centro e da Praia de Iracema ao estimular a circulação de artistas e público na região. Fechado desde o início da pandemia, no entanto, o espaço vive dificuldades de manutenção. Carri desabafa: "Manter essa estrutura antiga foi um desafio nosso. Tentei o máximo possível e só postava as dificuldades para poder sensibilizar. Eu entrei muito em contato com o poder público, mas já estou cansado. Estou cansado de pedir esmola. São quase 30 anos de teatro".
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Atriz, bailarina e coreógrafa, Silvia Moura assegura: a derrocada é coletiva. "Meu sentimento é de total revolta e impotência. Há muito tempo o Carri vem pedindo ajuda. É como se uma parte de mim tivesse caído, porque muitos de nós já passamos por aquele espaço, muitos grupos começaram ali. É muito grave que isso tenha acontecido. São tantos monumentos e tantos lugares, tantos prédios que fazem parte da história e da cultura da cidade de Fortaleza nesta condição, sabe? Esses espaços são muito importantes para a gente porque são fomentadores de cultura na nossa Cidade", indica.
"Eu acho que a queda de parte do Teatro da Praia é a gota da água para escancarar a precariedade e toda a falta de estrutura que rodeia os equipamentos culturais de um modo geral, principalmente os equipamentos mantidos pela sociedade civil. Nós estamos sempre expostos, sempre com o teto pra cair, sempre com alguém pra morrer, sempre com alguém que precisa de ajuda. A gente precisa sair desse estado de mendicância", pontua.
Com 45 anos de atuação na cena cultural, Silvia relembra outros equipamentos culturais que se perderam na Praia de Iracema. "É preciso que a gente pare de normalizar as nossas perdas. Nós não podemos mais perder tanto, a gente já perdeu muito, perdeu vidas, perdeu espaços, perdeu força, espaços de fruição. O Alpendre, o Teatro das Marias, tantos espaços que foram fechados naquela região porque os artistas não tinham condições de mantê-los", recorda.
"O governo precisa interferir, precisa dar condições para aquele espaço. Se algo não for feito, todo aquele espaço vai ser tomado por prédios e a nossa história cultural vai ser apagada pela especulação imobiliária e pelo valor do dinheiro. A gente precisa deixar um legado para as gerações futuras. Nós não podemos só entregar prédios de apartamentos ou grandes empreendimentos. A gente precisa deixar o legado cultural para as pessoas", complementa.
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Para o ator e militante político Ari Areia, o Teatro da Praia necessita de apoio contínuo do poder público — muito além de gestões. "Eu acho que o Teatro da Praia é um dos oásis que ainda temos de pé. Acho que existem essas duas caracterizações, a primeira é a importância histórica para o povo de teatro e a segunda é esse lugar de remanescente dentre essas iniciativas autônomas. Pensando na cultura como um direito e compreendendo que o poder público teria que levar muito tempo para conseguir abrir um teatro, uma biblioteca ou uma escola de cultura em cada bairro, as iniciativas independentes dos grupos, dos coletivos, como é o Teatro da Praia, precisaria de um suporte permanente do poder público. É preciso ter um programa permanente de manutenção para que esses lugares possam continuar de portas abertas", defende.
"Essa política não poderia ser uma política de uma gestão, porque as gestões acabam de quatro em quatro anos, então precisaria ser uma política de Estado, uma política de governo, que fosse permanente, que tivesse uma execução de dez anos, até porque você consegue avaliar essa política depois desse período, consegue ver o que deu certo ou não e poder modificar. A gente não quer falar no Teatro da Praia em verbos no passado. Eu quero muito ver subir no tablado do Carri uma, duas, três, tantas gerações quantas vierem. E quero poder levar minhas sobrinhas pra verem os infantis do Carri, contar pra elas de quando pisei ali pela primeira vez. O coração da gente faz esse apelo ao poder público que abrace como for possível o Teatro da Praia", finaliza Ari.
Titular da Secretaria da Cultura (Secult), Fabiano Piúba designou um engenheiro para avaliar a situação do galpão ao receber a notícia. "Silvia Moura me ligou e, imediatamente, fui visitar o Carri. Como é um teatro privado, o Estado não pode intervir com obras de uma maneira direta, então eu conversei com o Carri sugerindo a ele criar uma rede solidária para que possa ter essa intervenção, a recuperação de onde houve o dano. Não estou falando nem enquanto secretário, estou falando enquanto cidadão que quer colaborar nessa rede. O Teatro da Praia é muito importante para a cena artística da Cidade e do Estado. É preciso sim criar uma rede de atenção e de solidariedade para o equipamento que é um patrimônio", afirmou em entrevista ao O POVO.
Em nota ao Vida&Arte, a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (Secultfor) ressaltou que o Teatro da Praia foi contemplado no Edital de Auxílio para Espaços Culturais (Edital nº 7202), realizado por meio de recurso federal da Lei Aldir Blanc. A partir deste certame, a Prefeitura concedeu R$ 15 mil, em dezembro passado, para a manutenção do espaço cultural por ter tido as atividades interrompidas em função das medidas de isolamento social. Esse valor, conforme indicou Carri, foi utilizado em reforma estrutural em janeiro.
A pasta informou ainda que o Instituto Cultural Iracema (ICI), por meio de contrato de gestão com a Secretaria Municipal de Governo (Segov), firmou parceria colaborativa com o Teatro da Praia em 2020 com incentivos financeiros que viabilizaram a produção do documentário "Teatro da Praia: uma resistência em cena", que faz recorte histórico do bairro Praia de Iracema e narra a origem e realizações do teatro como ponto de cultura de grande destaque. O documentário foi lançado em maio deste ano em parceria com o Cineteatro São Luiz. Atualmente, encontra-se em desenvolvimento a nova marca do Teatro da Praia, além da pintura da fachada do equipamento pela equipe do Selo Coletivo.
Carri e parceiros, agora, empenham-se na reconstrução de futuros. "A Defesa Civil veio fazer a vistoria do espaço e o engenheiro que a Secult mandou fez um levantamento das coisas que estavam expostas. Uma construtora também está ajudando, veio fazer a retirada dos entulhos e o escoramento das outras vigas. Segundo o nosso levantamento, o que precisa ser feito é a remoção de todo aquele telhado para refazer; no palco — que é exatamente o lugar onde caiu todo o telhado e ele cedeu — é preciso refazer o tablado comprometido; e a instalação elétrica e uma instalação hidráulica que passava por baixo do palco também. Perdemos na queda todos os refletores, as varas de luz e a iluminação de serviço que estavam em cima do palco", enumera.
Para possibilitar a reforma, a Associação dos Produtores do Ceará e a Cia. Cearense de Molecagem lançaram um financiamento coletivo no site Vakinha com a meta de R$ 85.000,00. "É um valor alto, mas a gente está nessa correria para conseguir dar rumo ao Teatro da Praia", encerra Carri. (Com informações de Catalina Leite e Renato Abê)
Vakinha "Ajude a reconstruir o Teatro da Praia"
Onde: no site Vakinha
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