A advertência é enfática: "Crítico algum, teórico algum, historiador algum, romancista algum jamais escreverá a história do romance". Reconhecida a impossibilidade, o escritor e crítico de literatura Julián Fuks parte não para definir o gênero romanesco, mas cercá-lo, tateando-o pelas margens e identificando as principais linhas de força do que seja a forma literária por excelência.
O resultado é "Romance: história de uma ideia" (Cia das Letras). Recém-lançado, o livro é a transposição da tese de doutoramento de Fuks na Universidade de São Paulo (USP), defendida em 2016.
Nela, o escritor mapeia, em linha cronológica, os pontos cardeais do romance e seus principais representantes ou cultores; do clássico inglês, que demarca a ascensão do gênero no nascedouro da sociedade burguesa, até sua queda e quase dissolução, com Proust, Joyce, Woolf e sobretudo Beckett, aquele para quem toda escrita resultava inapelavelmente para o silêncio, numa encruzilhada que punha os escritores diante da pergunta: o que e como narrar?
As respostas viriam em seguida, múltiplas. Do realismo mágico à autoficção, o romance, formato onívoro para o qual convergem tudo e todas as vozes, foi se reinventando à medida que era sucessivamente declarado morto.
Daí até um possível reavivamento, agora não mais amparado numa mímese realista, mas atravessado por outros discursos e gêneros, como a autobiografia, a história, o ensaio, cuja expressão mais bem abadada encontra-se nas obras de W. G. Sebald e J. M. Coetzee, que souberam explorar mais do que quaisquer outros as imbricações de registros entre o ficcional e o não ficcional - uma fronteira cada vez mais diluída.
A pesquisa de Fuks tem por mérito, portanto, a viagem empreendida em fôlego de ensaio de investigação, como se o autor/pesquisador, dois lados da mesma moeda, se conjugassem na mesma pessoa para delinear uma trajetória romanesca, abarcando tempos e referências.
Catando pistas, evocando leituras e conectando autores, o que move a obra é menos certa preocupação com a elaboração de um conceito de romance e mais a construção de um painel vasto e ramificado do que já foi e é hoje um romance - essa forma duplamente escapadiça.
Por isso a imagem a que o autor recorre, da biblioteca borgeana, aquela cuja multiplicidade de portas e janelas inviabiliza os percursos retilíneos e induz a um traçado entrecortado.
Ora, romancista de sucesso, talvez um dos mais escritores brasileiros hoje, Fuks elabora a sua visada do gênero cioso de que o caminho é tortuoso e os pontos de chegada, inúmeros.
Sem descurar de pesquisa rigorosa, mas deixando-se conduzir pela prosa do ficcionista, a leitura abrange público além do especializado e interessado por teoria da literatura. O que se desdobra, ao passo que o romance vai se revelando historicamente, são os modos como a sociedade elaborou a capacidade de fabular e criar futuros possíveis.
Afinal, de todas as conceituações ao alcance do romance, talvez esta prevaleça no tempo e no espaço: realista aos moldes de Flaubert ou disruptivo como Cortázar, García Márquez e outros, o romance é uma projeção que se volta ao pretérito e ao porvir, reinvestindo-se de atualidade continuamente.
Numa conversa com O POVO, Fuks, por videoconferência, reafirma as qualidades da forma e lança suas apostas. "O romance é sempre muitas coisas ao mesmo tempo. Em cada época, em cada fase, pode ser quase a totalidade da história e da narrativa", teoriza.
Para ele, o gênero, se é possível defini-lo, hoje ou em qualquer época, seria por uma ausência de definição, uma inespecificidade que o potencializa e atualiza, instaurando campos dos quais se irradiam leituras fecundas e escritas que desafiam modelos sedimentados.
Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela UFC
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