"Quem é essa mulher que canta sempre esse lamento? Só queria lembrar o tormento que fez o meu filho suspirar. Quem é essa mulher que canta sempre o mesmo arranjo? Só queria agasalhar meu anjo e deixar seu corpo descansar. Quem é essa mulher que canta como dobra um sino? Queria cantar por meu menino que ele já não pode mais cantar". Um ano após a morte de Zuzu Angel (1921 - 1976), Chico Buarque compôs uma canção em sua homenagem. A letra revela as declarações de uma mãe que tem um único objetivo: lutar pela memória de um filho assassinado na ditadura militar brasileira (1964 - 1985). A composição repercute a realidade de milhares de mulheres no Brasil - tanto que seu título é "Angélica" -, mas foi inspirada na história da estilista Zuleika de Souza Netto, que completa seu centenário de nascimento no próximo sábado, 5 de junho.
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Considerado um dos nomes mais importantes da moda no País, a autodenominada "Zuzu" iniciou sua carreira como costureira. Passou por Curvelo, interior de Minas Gerais, Belo Horizonte e Salvador até chegar no Rio de Janeiro. E reuniu, em todas essas cidades, um conhecimento sobre as tradições que lhe serviriam de influências na criação. Após se separar de seu marido estadunidense, com quem adquiriu o sobrenome "Angel", ela passou a cuidar de seus três filhos sozinha com o trabalho de estilista.
Na época, em meados da década de 1960, a costura nacional ainda era muito baseada nas tendências do exterior. Entretanto, a estilista trouxe uma inovação: colocou a brasilidade nas suas peças autorais. "Zuzu é considerada a primeira estilista brasileira que assimilou elementos da cultura popular - materiais como rendas nordestinas, chitas com cores fortes, conchas, pedras brasileiras e estamparias que reproduziam a flora e a fauna tropicais", explica Ricardo Bessa, professor de História da Moda na Universidade de Fortaleza (Unifor).
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Ela também teve um olhar para o conforto da mulher. Na época, o público feminino enfrentava os resquícios dos espartilhos ao usar, por exemplo, cintas que deixavam a cintura mais fina e marcada. "A Zuzu trouxe a moda para um outro patamar. Não só ao trazer a brasilidade na moda, mas ao buscar esse conforto. Ela tira um pouco o peso da mulher de estar sempre incrível. Era uma feminista, na minha visão. Tenta fazer a gente entender que a moda não precisa ser um lugar que nos aprisiona", ressalta Valéria Toloi, gerente do núcleo de Educação e Relacionamento do Itaú Cultural e uma das curadores da Ocupação Zuzu Angel.
Mas uma faceta dela que ainda é pouco explorada é sua veia empreendedora. Na mostra do Itaú Cultural dedicada a ela, é possível perceber seu objetivo de tornar sua marca uma "maison", ou seja, uma casa de alta-costura. Se sua trajetória não tivesse sido interrompida tão cedo, talvez hoje estivesse ao lado de grandes nomes como Chanel, Dior, Louis Vuitton e Versace. "A nossa grande descoberta era que talvez ela quisesse ter uma maison. Ela tinha até adesivo com sua marca. Talvez se não tivesse que lutar para encontrar o filho e se não tivesse morrido na ditadura, ela teria colocado seu objetivo para frente", comenta Valéria.
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Não somente inovou a moda, como ainda levou essa realidade para o exterior. "Ela participou do Salão de Moda da Feira Brasileira do Atlântico, e, em 1967, apresentou a coleção 'Fashion and Freedom', no Copacabana Palace. Desde então, Zuzu também se projetou para fora do País, tendo participado inclusive de desfiles bem avaliados no exterior. Teve clientes midiáticas como a atriz Liza Minelli", comenta Ricardo Bessa. Com repercussão internacional e nacional, exibiu elementos culturais brasileiros. Expôs ao exterior símbolos de orgulho da população.
Ao mesmo tempo que impactou o estrangeiro com os principais motivos de vaidade da nação, também escancarou o que costumava permanecer escondido no interior da sociedade. Revelou aquilo que até hoje as pessoas têm dificuldade de abordar: o autoritarismo e a violência. Seu primogênito, Stuart, era um militante contra o regime militar e se tornou um desaparecido político em 1971. Após isso, houve uma ruptura nas produções de Zuzu Angel. Naquele momento, a brasilidade da natureza e as tradições regionais foram misturadas a denúncias contra a ditadura.
Realizou alguns desfiles-protesto. Entretanto, o mais conhecido foi o "International Dateline Collection III - Hollyday and Resort", que aconteceu no mesmo ano do sumiço de seu filho. Sem a possibilidade de fazer essa reivindicação em território brasileiro, promoveu o evento no consulado do Brasil em Nova York, nos Estados Unidos. "Suas criações misturavam os mesmos elementos identificados com seu trabalho, como anjos e pássaros, agora em um contexto de violência e opressão - engaiolados, amordaçados, aprisionados e cercados de referências à violência militar. Pássaros em gaiolas, quepes, aviões, tanques militares, soldados e canhões eram algumas imagens nos vestidos que cruzaram a passarela", explicita Ricardo Bessa.
Assim como muitos outros que denunciaram os horrores da ditadura e lutaram contra o regime, Zuzu Angel faleceu no dia 14 de abril de 1976 em decorrência de um "acidente de carro". Mas ela já tinha explicado a razão verdadeira um ano antes, em carta endereçada a Chico Buarque: "Se algo vier a acontecer comigo, se eu aparecer morta, por acidente, assalto ou outro qualquer meio, terá sido obra dos mesmos assassinos do meu amado filho". O motivo real já estava implícito na época, mas a Justiça somente reconheceu que ela e Stuart foram mortos pelo Estado no ano passado.
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"Zuzu representa essa mulher que saiu da cidade pequena e foi para o Rio de Janeiro, que ganhou o mundo fazendo o que ela acreditava. Se a gente fala sobre a pandemia e a sobrecarga da mulher durante o isolamento social, onde a casa e o trabalho viraram a mesma coisa, Zuzu também fazia isso. Ela foi uma mulher que precisou conciliar tudo, além de trabalhar, estava presente no cotidiano de seus filhos", pontua Valéria Toloi.
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