Em 1976, o dramaturgo João Ribeiro Chaves Neto escreve um texto teatral para reverberar as circunstâncias do assassinato do cunhado, o jornalista Vlamidir Herzog, morto sob tortura aos 38 anos após ser convocado para depor no DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna) de São Paulo durante a ditadura militar. O trabalho fundamentou o espetáculo "Patética", organizado originalmente em 1980, que estreia no formato digital em nova montagem neste sábado, 5, na segunda edição do Festival São Paulo Sem Censura.
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A obra é adaptada desde 2018 pela Cia. Estável de Teatro e mostra uma trupe de artistas circenses que traça - pela primeira e última vez - a história de Glauco Horowitz (Herzog) em uma apresentação. Ao discutir a censura, a própria peça é proibida e o circo é fechado. Através do metateatro, a produção relata toda a trajetória da personalidade desde a imigração, passando pela militância e carreira, até chegar à morte e à luta da família para comprovar o crime. "O que nós fizemos foi adaptar esse espetáculo para aquele período. Quando a gente assiste hoje, nós vemos que todas as referências estão extremamente atualizadas", reflete Osvaldo Pinheiro, ator e integrante da companhia.
"Nós escolhemos o 'Patética' porque nos interessava muito, principalmente pelo contexto daquele momento. Foi uma forma de celebrar como resistência", informa o artista ao relembrar o primeiro contato do grupo com o documento. Durante o processo de pesquisa, os integrantes conversaram com sobreviventes da ditadura, estudaram sobre os processos históricos do contexto ditatorial, treinaram técnicas do melodrama circense e discutiram o acontecimento com a família de Vladimir. "Foi muito bonito este encontro, ao mesmo tempo esses momentos são muito difíceis para a família, essa luta deles para lembrar que foi um assassinato e não um suicídio", conta.
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O espetáculo original passou por um percurso conturbado. O texto foi premiado, teve a premiação suspensa, foi confiscado, vetado e, apenas em 1979, pôde ser liberado. O diretor Celso Nunes e a atriz Regina Braga, ambos participantes da primeira versão de "Patética", dividiram suas experiências com a nova equipe. "Eu lembro muito de um relato da Regina e do Celso dizendo que o espetáculo não teve muito sucesso, porque ali no final da ditadura, as pessoas tinham medo de ir ao teatro para ver um espetáculo sobre essa temática e elas também queriam esquecer um pouco dessa memória traumática da conjuntura nacional", relata o ator.
Segundo Osvaldo, a censura ainda não acabou, embora muitos busquem ignorar a realidade de opressão. "A repressão nunca deixou de existir nas periferias. A gente tem o genocídio perpetuado da população indígena há mais de 500 anos, tudo isso está presente na atual conjuntura e infelizmente de uma forma cada vez mais potente", destaca. Ele também faz ligação com o cenário artístico atual e menciona o papel de resistência da Cia. Estável - que celebra 20 anos neste mês - no campo das artes. "O artista sempre é colocado em um lugar de despejo. Nós estamos atentos e atentas, a gente não vai desistir dessa luta jamais", frisa.
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Com críticas sociais e cenários estéticos, a peça já passou por diversos festivais e migra para o digital através de uma gravação realizada antes da pandemia. "Nós gravamos com um olhar mais cinematográfico, com cinco a seis câmeras, que ajudam a contar a história de uma outra perspectiva. É um conteúdo pertinente e a obra entra com o recurso de aprofundar essas questões", detalha Osvaldo. Após a mostra, o elenco se reúne com Celso Nunes para um bate-papo, uma maneira de aproximar o público e os artistas neste período de distanciamento.
Em memória
Vladimir Herzog (1937-1975) foi um jornalista e dramaturgo brasileiro. Nascido em família judia na Iugoslávia, migrou para a Itália por conta das forças nazistas. Anos depois, chegou ao Brasil, onde fez faculdade, casou e teve dois filhos. No dia 25 de outubro de 1975, o Exército atestou suicídio na nota oficial de sua morte, que gerou comoção nacional. Em 1996, a Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos reconheceu o assassinato de Herzog e, somente 15 anos depois, o atestado de óbito foi retificado.
Espetáculo "Patética"
Quando: 5 de junho, sábado, às 20 horas
Onde: Facebook e YouTube da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo
Programação gratuita
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