Era mais ou menos 2014, quando pela primeira vez tive a oportunidade de assistir a "Carmen", de Bizet, como uma espécie de iniciação aos clássicos. A gente tinha começado a namorar recentemente e esse programa foi importante para mim, já que nunca tinha entrado no Teatro Municipal de São Paulo durante uma temporada de óperas. Aquela ritualística toda me impressionou. Cantarolei baixinho o refrão de "Habanera" no meio do espetáculo. A cenografia era enorme.
No começo dos anos 1990, "Carmen" começava a me soar familiar. Durante alguns meses da minha infância, minha irmã do meio escutava e aprendia a entoar os versos da "Habanera" num francês, que para mim era perfeito. Eu adorava ver a empolgação dela, que também lia o "Mahabharata" em alto e bom som. Eu não sabia onde era Séville, nem a Grande Índia, mas tinha a certeza de que um tal de Michel ia atender um "téléphone" saindo de "la piscine". "Dépêche-toi!" - era o som de alguma linha do livro de francês que consegui decorar junto a minha irmã. O 3 em 1 tocava alto aquele CD de "Carmen", ecoando Maria Callas pelo Papicu, enquanto no comecinho da noite a rede de tucum balançava no jardim de inverno.
Minha outra irmã, acho que na mesma época, me lia a "Ilíada" e algo da mitologia grega. Eu era tão pequeno, achava aquilo tudo muito impressionante e ao mesmo tempo familiar. As tragédias, o "Édipo Rei". De vez em quando, queria escutar as histórias ou ler junto e pedia para repetirmos nossas sessões de "tragédias negras" - confusões possíveis para um menino de 9 anos, sem ideia ainda do sofrimento ou da real tragédia negra da diáspora. Pelo visto eu não devia saber direito o que era a Grécia, mas tenho certeza que já intuía a sua importância. Minhas costinhas no chão gelado de cerâmica vinte por vinte me refrescavam do calor de setembro. Só de calção e de pé descalço. E eu fui cedinho aprendendo a ouvir e a acreditar no poder do conhecimento.
Em 2006, estagiei no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), órgão atrelado ao extinto Ministério da Cultura. Como estudante de arquitetura, eu começava a cultivar uma paixão pelo patrimônio construído. Sempre saía ali do lado e via aquele teatro verde-escuro. Vidro, ferro fundido, o lustre central do teto que escurece devagar. Na sala do prédio do Iphan, Veloso e Célia me mostravam os desenhos arquitetônicos da reforma da década de 1990, pela qual o teatro havia passado.
Em 2004, conheci o primeiro homem por quem me apaixonei profundamente. Era ali, numa festa no jardim do Teatro. No jardim do Burle Marx, pertinho do palco onde demos nosso primeiro beijo. Sim, eu já me orgulhava do Burle Marx.
Em 1908, começaram a ser erguidas as colunas e a fachada do Theatro José de Alencar, comprado de Glasgow, na Escócia. A empresa MacFarlane Factory, responsável pela fabricação de elementos de ferro fundido, exportou para o Ceará tecnologia em forma de teatro.
Também ali no TJA, no começo de 2001, sem muita certeza, vi numa bienal de dança, com a fachada de ferro do teatro ao fundo, um espetáculo em que um bailarino dançava em movimentos repetitivos uma música muito alta - um corpo careca e estranho, vestido de couro preto a la BDSM, no mormaço do finzinho da tarde.
Em 1857, José de Alencar lançava "O Guarani", um dos romances históricos mais conhecidos da literatura brasileira, que viria a inspirar um libreto em italiano, de uma ópera de mesmo nome, cuja autoria é de Carlos Gomes. A ópera foi apresentada pela primeira vez em Milão, em 1870, para um público sedento por exotismo.
A Grécia, a França, um romance, a Escócia, o Ocidente. O Norte global e o centro de Fortaleza.
Em 2020, fui convidado pelos grupos "Teatro Máquina" e "No barraco da Constância tem" a pensar numa cenografia para o espetáculo "Resumo da Ópera" - que deve acontecer nas dependências do TJA em livre conexão com a ópera "il Guarany".
Agora em abril de 2021, depois de uma chamada de vídeo longa e da leitura de um roteiro ainda em processo, criei uma pasta com referências para começar a pensar a cenografia. Um carro alegórico destruído, paredes verdes chroma-key de um plástico brilhante, o rótulo da garrafa de Catuaba Selvagem, uma pedra grande, os destroços de uma guerra, o mapa da comunidade Guarani espalhada pelo Brasil - ou o que resta dela. Um brilho.
As ideias do século XX me parecem lentamente esmaecer. As ausências causadas pelo vírus são muito dolorosas. O olhar sobre o mundo parece não ser mais o mesmo; algo dissidente.
Ainda estamos na pandemia. Colômbia em chamas com manifestantes dançando "Vogue". O Brasil não responde aos fatos. O Sul global e a periferia.
Só pode ser outro Guarani.
E eu, continuo ouvindo e aprendendo, mas atravessado.
A última vez que visitei o Theatro José de Alencar foi voltando da praia, pós-réveillon no começo de 2018. Na tentativa de mostrar a joia arquitetônica para meu amor, que visitava Fortaleza depois de muito tempo, subimos a escada helicoidal e vimos juntinhos a cidade sob o sol quente da tarde.
Frederico Teixeira é arquiteto com atuação na área de expografia e cenografia
Ópera "Il Guarany" revisitada
Os grupos cearenses Teatro Máquina e No barraco da Constância tem! estão trabalhando na montagem "Resumo da Ópera", obra que traça paralelo entre "Il Guarany" de Carlos Gomes (1836-1896) e a formação da sociedade brasileira. O projeto prevê múltiplos formatos cênicos: o espetacular, que será realizado nos espaços do Theatro José de Alencar; o teleteatro, contendo registros do espetáculo filmado a ser exibido na TV Ceará; e a série televisiva em formato de lives gravadas durante o processo de montagem. O Vida&Arte está acompanhando o processo de pesquisa, criação e divulgação da obra e, até a estreia da montagem, apresentará conteúdos sobre o processo de criação de "Resumo da Ópera".
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