Logo O POVO+
Criança Viada: Livro reúne histórias de abusos enfrentadas por homens gays
Vida & Arte

Criança Viada: Livro reúne histórias de abusos enfrentadas por homens gays

O jornalista e pesquisador Ícaro Machado reuniu 40 crônicas sobre histórias de abusos e memórias afetivas enfrentadas por dez homens gays durante a infância
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
O livro
Foto: Divulgação O livro "Criança Viada", do jornalista Ícaro Machado, reúne 40 textos que falam sobre abusos e memórias afetivas de dez homens gays durante a infância

"Quando fui crescendo, eu percebi que tinha aniversário na rua do qual eu não era convidado. Os convites foram, gradativamente, diminuindo. Tornaram-se, com o tempo, escassos. Muito também porque eu era pobre, e geralmente não tinha presentes para levar. Ser presente não era presente. O que importava era o presente material. Mas também porque eu era gay. Uma criança viada. E isso talvez fosse inadmissível nas festas infantis de minha rua. Pelo menos eu acho isso hoje".

O trecho acima pertence à crônica "Aniversário", presente no livro "Criança Viada". A obra foi elaborada pelo jornalista e pesquisador natural de Aracati Ícaro Machado e compila 40 crônicas que versam sobre abusos e memórias afetivas de homens homossexuais durante a infância. O livro segue uma proposta "jornalístico-literária" e busca trazer discussões sobre desamparo familiar, social e psicológico enfrentados por crianças homoafetivas do sexo masculino.

Leia Também | Exposição virtual faz álbum de memórias dos moradores do Poço da Draga

A ideia para o desenvolvimento do livro surgiu como uma proposta para o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Ícaro. Ele quis elaborar um experimento textual que trouxesse memórias da infância por meio de entrevistas individuais e se aliasse ao seu desejo de discutir questões relacionadas à comunidade LGBTQIA em seu percurso acadêmico. Entre os autores lidos por Ícaro, estão o filósofo Michel Foucault e o pai da psicanálise Sigmund Freud.

As histórias foram compartilhadas por dez homens homossexuais, denominados "adultos viados", de diferentes locais, crenças e vivências socioeconômicas. Por meio de entrevistas em profundidade com foco na infância dos entrevistados, Ícaro colheu depoimentos variados para desenvolver as narrativas das crônicas. "O objetivo era construir uma narrativa que fugisse dessa ideia que as pessoas têm de que existe um perfil de criança viada", comenta o jornalista.

Leia Também | Festival In-Edit Brasil terá mais de 50 documentários musicais inéditos

Essa variedade de contextos, segundo o autor, possibilita também a desmitificação de que "existe uma influência externa" para que uma pessoa seja homossexual. Ele cita, como exemplo, o caso de uma criança do livro que morava na região do Cariri e que até os seus cinco anos de idade não tinha contato com outras crianças além de seus próprios irmãos, heterossexuais. "Então, de onde veio essa influência para que essa criança, aos cinco anos, já manifestasse ter um jeito 'afeminado', como é considerado como criança viada?", reflete Ícaro.

Além de intitular o livro, a expressão "criança viada" esteve no questionamento que norteou as entrevistas feitas por Ícaro, que buscou saber por quais motivos os entrevistados se consideravam "crianças viadas" durante a infância. A partir disso, conseguiu traçar caminhos para a escrita das crônicas que levam as informações compartilhadas. Há trechos das entrevistas transcritos, sim, nos textos, mas as composições passaram por um "funil literário" desenvolvido pelo jornalista.

As crônicas expõem casos de abusos sexuais e emocionais causados por familiares e vizinhos. Além disso, trazem discussões sobre "conflitos internos" vividos pelas crianças devido a interpretações de terceiros de que elas "iriam para o inferno" por serem homossexuais. Não há "linearidade" no livro, isto é, as crônicas podem ser lidas "de acordo com o interesse temático" do leitor. Isso não significa, porém, que não tenham semelhanças.

"Quando um adulto gay hoje ler esse livro, ele vai se identificar com alguma história. Alguma história ele já vivenciou. Existem histórias que se repetem entre os entrevistados, mas de maneiras diferentes e com pessoas diferentes. Quando você termina o livro, cuja leitura não segue uma linearidade e você pode ler de acordo com seu interesse de temática, você tem a sensação de que é uma criança só que viveu tudo aquilo", aponta Ícaro.

Leia Também | Orquestra feminina estreia na quarta, 16, com participação de Elba Ramalho

Nas narrativas, Ícaro por vezes apresenta elementos de forma implícita: "O livro pede muita sensibilidade para perceber o que não está sendo dito". Não há identificação, nas crônicas, dos homens que dividiram suas histórias.

Entre as propostas do "Criança Viada", o aracatiense destaca a ideia de apresentar um produto voltado à literatura e também de elaborar uma obra que faça as pessoas "se colocarem no lugar do outro", possibilitando, assim, mais chances de apoio. Ele menciona a crônica "Elástico é coisa de menina", em que fala sobre o episódio de uma "criança viada" que foi flagrada brincando de elástico por um "adulto viado" que já havia brincado dessa forma.

"Nós sabemos que se assumir enquanto pessoa gay ainda é muito complicado e difícil, mas hoje temos um meio que abraça mais. Antigamente éramos muito sozinhos porque não nos entendíamos. Não havia ninguém que nos mostrasse que que o que somos é algo que várias outras pessoas são. Embora existam muitas coisas a serem mudadas ainda, hoje existe um ambiente familiar mais acolhedor, é mais comum", comenta.

A importância do livro, na visão de Ícaro Machado, toca no ponto do processo de "assimilação" por outras pessoas de abusos - tanto sexuais quanto emocionais - sofridos por crianças homoafetivas. Assim, também pode alertar para a necessidade de discussão sobre a relação corpo, gênero e sexualidade de crianças e adolescentes.

Nesse sentido, ele aponta que o mais importante é que a família acolha seus filhos e que sejam "desconstruídas" algumas visões, como a ideia de que existe brinquedo para menino e brinquedo para menina. "Toda a construção social de determinações deve ser abolida. Não existe caminho para ser homem ou mulher. As pessoas seguem como elas se identificam, como acham que se sentem bem e felizes", afirma.

"Acho que o mais importante é que exista aceitação, informação, amor, respeito, compreensão e diálogo. As nossas crianças conversam conosco o tempo todo. Se você criar um ambiente de segurança e diálogo em que ela sempre te procurará para compartilhar sobre a vida dela, isso vai fazer com que ela não te esconda nada. Isso vai fazer com que se ela passar por alguma situação de desagrado ela vai te contar", ressalta.

Aniversário

"Era uma grande caixa estritamente retangular. A maior entre todas as outras. De longe a mais preenchida. Tinha outros embrulhos, mas eu já sabia que só esse pacote poderia ser o meu. A minha caixa de presente de Dia das Crianças. Aaaah, como eu amava o Dia das Crianças. Tudo era feito pra gente. Vó, vô, tios, padrinhos, eventos na escola, na igreja. Todo mundo ia lá em casa e deixava algum embrulho pra mim.

A então minha caixa retangular estava revestida por um papel de presente iluminadamente colorido, preso por um laço em tons de azul com rajadas na cor vermelha por entre as pontas...Quando vi o embrulho com aquele laço azul cintilante, fui logo correndo em direção a ele. Não tinha como puxar o laço delicadamente. Eu queria desesperadamente saber o que havia dentro daquela caixa retangular. Rasguei o papel vorazmente, na tentativa de desvendar de uma vez por todas se, de fato, meu pedido fora realizado. Será que eu tinha ganhado os meus Power Rangers de presente? Papel pelo chão — mistério desvendado.

Era uma caixa marrom, sem nada, mas quando abri, lá estavam eles, os cinco Power Ranges: azul, verde, amarelo, rosa e vermelho. Com o presente revelado, a minha mãe se aproximou e tomou dois de meus bonecos: a ranger amarela e a rosa. E disse que eu poderia brincar com o restante. Não entendi..."

Dia das Crianças

Era uma grande caixa estritamente retangular. A maior entre todas as outras. De longe a mais preenchida. Tinha outros embrulhos, mas eu já sabia que só esse pacote poderia ser o meu. A minha caixa de presente de dia das crianças. Aaaah, como eu amava o Dia das Crianças. Tudo era feito pra gente. Vó, vô, tios, padrinhos, eventos na escola, na igreja. Todo mundo ia lá em casa e deixava algum embrulho pra mim.

A então minha caixa retangular estava revestida por um papel de presente iluminadamente colorido, preso por um laço em tons de azul com rajadas na cor vermelha por entre as pontas. Acho que o laço era acetinado, não era uma fita qualquer. Afinal, era o Dia das Crianças, e eu havia passado o mês todo dizendo o que eu queria. A caixa e o embrulho tinham de ser à altura.
Eu sempre tive muitos brinquedos. Não tinha do que reclamar. Talvez por ser uma criança sozinha, as pessoas me davam mais presentes. E no Dia das Crianças triplicava. Eu amava. Criança é tudo igual. Quando volta das férias, ainda em agosto, a gente começa a aperrear os pais da gente. Chega setembro, a gente já mudou de presente umas dez vezes. Quando a gente é criança, a gente quer tanta coisa. Quer tudo. A gente acha que é só pedir que vem. Mas nesse ano não. Nesse ano eu foquei. Lembro de ter passado o mês de setembro todo pedindo, implorando, esperneando uma única coisa, um único presente — mamãe, me dá os Power Rangers no Dia das Crianças. Eu quero tanto. Acho que ganhei.

Quando vi o embrulho com aquele laço azul cintilante, fui logo correndo em direção a ele. Não tinha como puxar o laço delicadamente. Eu queria desesperadamente saber o que havia dentro daquela caixa retangular. Rasguei o papel vorazmente, na tentativa de desvendar de uma vez por todas se, de fato, meu pedido fora realizado. Será que eu tinha ganhado os meus Power Rangers de presente?

Papel pelo chão — mistério desvendado. Era uma caixa marrom, sem nada, mas quando abri, lá estavam eles, os cinco Power Ranges: azul, verde, amarelo, rosa e vermelho.

Com o presente revelado, a minha mãe se aproximou e tomou dois de meus bonecos: a ranger amarela e a rosa. E disse que eu poderia brincar com o restante. Não entendi. Eu queria justamente brincar com elas. As que eu mais gostava. Mamãe me disse que eu brincasse com os outros três e que, quando eles quebrassem, ela me daria os outros dois bonecos. Eu não entendi ao certo. Eles eram exatamente iguais: mesmo tamanho, mesma roupa, até as armaduras eram iguais, só as cores eram diferentes. E eu gostava mais justamente das cores guardadas. Decepção.

Não sabia o que fazer. Tinha que bolar um plano pra poder unir os meus Power Rangers de novo. Não é que eu não gostasse dos três que estavam comigo, eram até legais, mas não era a mesma coisa. Tinha que resgatar as outras duas cores.

Dos planos, uma vez tentei dizer que havia esquecido na escola; outra que tinha deixado na casa do meu primo. Nada funcionou. Ela disse que só me daria os outros dois quando os três que estavam em minha posse estivessem quebrados. Não havia mais nada a ser feito. Tive que sacrificar os Power Rangers azul, verde e vermelho. Bolei o plano de criança malina. Às vezes eu era cruel. Ateei fogo na cabeça dos três bonecos. Foi duro. Mas ganhei as Rangers rosa e amarela de consolo.

Suzy noivas

"Tu sabe quando você entra no mundo da Barbie que você tanto quer? Bicha, era surreal pra mim. Era S-U-R-R-E-A-L. A minha vó tinha uma loja de vestidos de noivas, a Suzy Noivas. Viado, ARARAS E ARARAS de vestidos de gala de todas as cores e tamanhos. Eram brilhantes; opacos; longos e curtos; com adereços; lisos; com bordados. Máscaras e leques. Tinha um baú cheio de réplicas de joias. Em material barato, claaaaaroo. Tinha umas anáguas; uns véus belíssimos, meu amor; e uns sapatos de salto alto babadeira. Mulher, eu ficava altíssima com os saltos, viado. Testava todos. Tudo isso porque a minha avó viajava para o exterior, sabe, daí quando voltava trazia muitos vestidos e adereços para alugar na loja dela...

Bee, uma coisa que toda criança gosta é de ir passar o dia na casa dos avós. Eu me vestia com os vestidos da loja, sabe; mas sempre aqueles vestidos mais fáceis de tirar, que era para não ser pego vestido de mulher. Morria de medo de ser pega fazendo o baratismo, viado, porque ia ser um escândalo lá em casa. Sem falar que, certeza, iam me proibir de ir pra loja. Certeza..."

O livro
O livro "Criança Viada", do jornalista Ícaro Machado, reúne 40 textos que falam sobre abusos e memórias afetivas de dez homens gays durante a infância

Criança Viada

De Ícaro Machado
Editora Viseu
134 páginas
Quanto: R$ 39,90 (versão impressa); R$ 9,90 (e-book)
Onde comprar: eviseu.com/pt

Podcast Vida&Arte
O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker.

O que você achou desse conteúdo?