Convite feito e aberto ao público: na quarta-feira, dia 23, às 18h30, Ronaldo Fraga, um dos principais estilistas do país, revela “Terra de Gigantes”, coleção inspirada nas riquezas culturais do Cariri que abrirá a 51ª edição do São Paulo Fashion Week (SPFW), pelo segundo ano na pandemia, 100% digital via plataforma streaming.
O trabalho, batizado de forma simbólica, mais que moda, é, por trás, um “intercâmbio cultural”. Envolvendo alunos do Senac do Cariri, nasceu em parceria com o Sistema Fecomércio, por meio do projeto dos Museus Orgânicos, apresentado ao estilista pelo Sesc e Senac Ceará, e que Ronaldo, diz, se encantou. A cultura de um povo presente em seus guardiões, como é seu Espedito Seleiro, um dos mestres com quem trocou vivências na vinda à região, em breve, mais uma vez, ganhando o mundo.
Desbravador de Brasis, Ronaldo faz assim. Dá vida e gera valor à história. É como prepara suas “fornadas” (de moda), “pães” que o alimenta, a partir da partilha, humana e profissional, muito antes desse hoje, há 20 anos, quando começou a ir além no vestir do corpo, com a sua primeira sequência de looks assinada sendo ele na veia autêntico e provocador; outras formas, conhece, de estreitar - tão bem - moda e cultura.
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Imerso nas terras daqui - fala na entrevista devolvida por áudio preservando a oralidade nas respostas -, Ronaldo está entregue, como sempre foi, para tudo que tem seu olhar e coração - multiplicados, se preciso. Vai em um saco de pão, como propôs, sem cerimônia, há alguns anos, em um dos seus desfiles no evento em SP - e que estive para presenciar -, para levar como lembrança.
Ronaldo, como os mestres de cá, é um ícone (da irreverência e ousadia; igualmente das cores e criação), um patrimônio da moda brasileira vivo, chamando atenção ao que nos faz mais próximos, no momento, sermos, neste tempo, pela soma e união, “gigantes”. Entre na nossa conversa.
O POVO: Como surgiu o convite para a parceria? O tema também veio junto ou foi algo construído?
Ronaldo Fraga: Essa coleção que eu estou chamando de Terra de Gigantes é um olhar sobre os mestres e a grandiosidade do Cariri cearense. Eu já tenho uma relação com o Cariri, com o universo do Cariri já há muito tempo, sobretudo o Cariri paraibano, embora já tenha feito uma coleção em que eu pus numa mesa para conversar a obra do alagoano Graciliano Ramos, do pernambucano João Cabral de Melo Neto e a obra do cearense Espedito Seleiro. Então, foi um reencontro com o Espedito Seleiro nesse projeto.
Eu fui convidado pelo Senac do Ceará e o Sesc que está com um projeto lindo e inédito que são os Museus Orgânicos. Quando me apresentaram a história dos Museus Orgânicos eu falei olha é isso, é isso que tem que ser feito. É a hora de fazer uma coleção em cima dessa história.
Apresentaram um projeto do que está acontecendo, me deram total liberdade para encontrar o fio da meada né? E obviamente a minha coleção teria a liberdade da abordagem, mas que houvesse um envolvimento dos alunos do Senac do Cariri, localizado no Crato e Juazeiro.
E foi um desafio porque tivemos que fazer um trabalho a distância em tempos pandêmicos, colocando a dificuldade para trabalhar a nosso favor. E o que fizemos? Um encontro semanal com os alunos, em que eles pesquisavam e eu colocava para eles o meu caminho de pesquisa, o passo a passo da minha da minha montagem de coleção, o meu processo criativo de modo que quando nos encontramos para fazer o vídeo eu já estava e já me sentia íntimo de todos eles.
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OP: Qual foi o tempo de desenvolvimento e como a coleção é composta? Alguma peça ou família que ressalta a essência desse encontro com as artesanais e matérias locais?
Ronaldo: Foram 2 meses de trabalho, desde o primeiro contato, pesquisa e, como eu disse, esse universo do Cariri sempre me fascinou. Então, eu já tinha muito material em casa, já tinha estado em Juazeiro do Norte, em Nova Olinda, e aí tive conhecimento dos outros mestres que também pesquisei "santa internet".
E obviamente assim tive a dificuldade de trabalhar com bordados verdadeiros lá da região, que eu queria, mas tive que trabalhar com pessoas e bordadeiras de Minas, reproduzindo o richelieu local e alguns outros bordados. Eu não ressalto nenhuma coleção porque quando eu penso numa coleção eu penso como um todo, é uma longa história que se conta. Então, não existe uma família em específico, mas todo o conjunto dela e o que eu quis passar com aquilo.
O meu desejo foi fazer uma coleção que sinalizasse o otimismo, que trouxesse o calor das relações das pessoas do Cariri, que te recebem, que te abraçam de uma forma diferente de qualquer outro lugar do país. Então, num tempo em que vivemos um período tão mais difícil da história desse país é importante a gente sinalizar os pontos de resistência. Resistência amorosa, resistência cultural. E essa coleção fala disso, é uma explosão de cores, de combinação de cores, uma coleção em que a única base de tecido é 100% linho, mas que tem muito trabalho de bordados e de jogo de cores. Inclusive, curiosamente, é uma coleção com pouquíssima estampa que, para os meus padrões é difícil, porque eu adoro estampa, mas as estampas aqui são as combinações de cores mais uma referência do Cariri cearense.
OP: Você se surpreendeu em alguma etapa desse processo? Qual sua memória mais doce? Também, algum desafio, a pandemia, por exemplo? Como isso se refletiu nas andanças da coleção de moda?
Ronaldo: Para desenvolver um trabalho de uma coleção do objeto pesquisado, você precisa estar apaixonado por esse objeto pesquisado, uma vez o Rui Castro disse isso, que antes dele escrever uma biografia tem que ter se apaixonado pelo biografado porque ele entra na sua vida para não sair nunca mais.
Agora tem uma história dos mestres que esse mestre me chamou muita atenção que é a história do Mestre Françuli porque eu acho que ele retrata a história de todos os outros da importância de marcas que vem com a infância.
Ele era filho de lavrador, ficava em cima de um pé de um Juazeiro, observando os pássaros e um dia ele viu um pássaro diferente de todos. Ele desceu correndo até a lavoura e perguntou ao pai que pássaro era aquele. O pai disse que aquele pássaro era um avião e dentro daquele pássaro tem um tanto de gente dentro. O pai além de trabalhar na agricultura, à noite fazia com folha de flandres as lamparinas.
Naquela noite ele não fez lamparina, ele fez um aviãozinho de presente para o filho, isso no ano de 1948, o filho viu aquilo e começou a imitar o pai e a vida inteira o que ele faz? Aviões! Ele fala que através de seus aviões que ele voa, que ele sonha, e é aquilo que dá vida a ele, que o mantém de pé. Eu acho que é uma história linda porque você vai ver a referência da infância em todos eles. Espedito Seleiro com a história de Lampião encomendando os sapatos lá pro pai dele, que era celeiro, e o pai criou o sapato quadrado para despistar as pegadas das polícias para que lado o bando tinha ido. Então, essa história eu acho que ela marcou. Eu amei isso daí.
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OP: Aproveitando, para além de uma coleção com raízes caririenses, "Terra de Gigantes" o inspira de que forma?
Ronaldo: Terra de gigantes eu estou falando do Cariri cearense porque quando você pensa, vamos falar, o nordeste para mim é o grande amálgama da cultura brasileira e o epicentro dessa amálgama é o Cariri cearense sem dúvida alguma, que ele tem uma formação característica do brasileiro. Onde os povos são filhos da mistura de índios cariris, com os escravizados, os africanos malês, que eram de origem muçulmana do norte da África e os cristãos novos, os judeus que vieram na época fugindo da inquisição na Espanha e em Portugal. Então, dessa mistura, nasceu o povo daquele lugar e essa mistura que é a base do brasileiro. Essa Terra de Gigantes tá falando do Brasil também que é uma terra de gigantes, mas eu estou falando do epicentro da cultura brasileira que é o Cariri cearense.
OP: Aproveitando novamente, Ronaldo, a moda está na cultura e ou a cultura está na moda? O que te faz acreditar nesse exercício encarado como paixão?
Ronaldo: Lembrando uma frase da arquiteta italiana Lina Bo Bardi, uma apaixonada pelo Brasil, pela arte popular, ela disse certa vez que ela sonhava um dia em que os talheres para se comer, as cadeiras para se sentar, as casas para se morar e as roupas para se vestir, desenhadas por brasileiros, trouxessem o mínimo da grandiosidade da cultura desse lugar. Então, nós vamos fazer o quê? Ficar esperando sentado vendo a Prada "se inspirar" numa sandália de couro lá de Caruaru? Ou esperar ver na coleção de McQueen a xilogravura pernambucana e nordestina para depois a gente repetir? Não! Nós podemos olhar para nossa cultura e colocar a cultura para trabalhar a nosso favor e rompendo frentes. Quem ganha com isso é a moda, porque ela ganha corpo, ela ganha personalidade, ela ganha autoridade e ela ganha identidade, porque sem isso a moda não existe.
OP: Ainda sobre a parceria, e aproveitando o batismo dado ao resultado desse trabalho, Ronaldo, quais suas impressões nas terras de cá e que "gigantes" da cultura local tocaram seu coração? Que aprendizados e ensinamentos foram multiplicados a partir desta experiência?
Ronaldo: Me emociona muito a herança dos índios Kariris. Os índios, que pouca gente sabe, mas enquanto no restante do Brasil os índios andavam nús, os Kariris não, os Kariris já usavam adornos no corpo que a gente chama de roupa hoje. E os Kariris também, os Kariris cearenses, eles não tinham um cacique, eles tinham um rei. Eles entendiam aquilo como um Reino, tanto que, depois da federalização quando o Brasil foi dividido em estados, Ceará, Pernambuco, Paraíba… aquele reino, aquela característica, continua permanente até hoje.
Então, por mais que tenham dizimado ou tentado dizimar essa cultura desse povo, essa cultura desse povo ainda está viva. É só olhar com olhos para querer ver, porque está ali. Ali na gastronomia, no jeito de cada um, sem contar na forma física, no olhar de índio que todos carregam. E isso é lindo, isso para sempre eu levarei comigo.
OP: Também te pergunto, de modo mais geral, falando da sua fase neste tempo: o que é fazer moda - expressar-se e unir forças por meio dela, da moda - em meio a um cenário ainda pandêmico?
Ronaldo: A moda é um canal, uma forma de comunicação poderosíssima, e, mais que isso, o registro de um tempo. Então, em tempos tão difíceis, ela fala de quê? Ela vai falar de quê? Ela vai registrar o quê? É uma pergunta que eu sempre me faço. E até nesse momento que a gente vive de desindustrialização do Brasil, a indústria está migrando definitivamente para os países asiáticos, o que nos sobra é a criação. E é muito importante que a gente estimule novas sementes, que novos estilistas, uma nova escola de moda, tenha outra relação com a própria moda, o lugar e a cultura desse país. Então, eu acho que é assim que nós vamos vencer essa nova fase, esse país mundo e esse país em escombros mais do que nunca, um país que em todos os sentidos a gente está vendo ele se desintegrando, mas é desses escombros que a gente vai reinventá-lo.
OP: Também a ver: em um momento como nenhum outro, apesar de este ser o segundo ano na pandemia, o que significa e qual a importância de voltar essa atenção hoje à cultura como é o mergulho proposto pela iniciativa envolvendo os museus orgânicos?
Ronaldo: Quando a gente vai falar dos Museus Orgânicos, primeiro a gente vê que obra em si, não é a obra. É quem a faz, é o mestre. E quando esses Museus Orgânicos são as casas desses mestres, o seu universo, aí ele se transforma no museu de afetos. E nós estamos empobrecidos de afetos, de carinho, de cuidados. Eu me lembro quando visitamos o Mestre Antônio Luiz, marcamos de voltar no dia seguinte com os brincantes para poder gravar.
Quando chegamos, obviamente, levamos milho para colocar na fogueira, batata doce, bolos, mas ele tinha saído e ele tinha comprado 3 bolos de macaxeira, cortado, disposto bonitinho num tabuleiro e coado um café para receber todo mundo. O meu coração partiu, o meu coração partiu. Então, eu acho que estamos machucados, nervos à flor da pele, fraturas expostas, e precisamos de cuidado. E essa cultura dessa região do país ela acolhe, ela acalenta, ela pega a gente no colo.
OP: A coleção será apresentada na semana de moda de maior visibilidade do país, em formato remoto, transmitido a todo o mundo, assim como foi sua última participação, também por vídeo, na SPFW. O que esperar desse momento, que soube já que será a abertura da edição Nº 51 do evento? Também, como reflete esse cruzamento do local com o sem fronteiras (o acesso amplo e aberto com a semana de moda digital)?
Ronaldo: Numa edição digital, eu paro, penso e falo pra gente colocar as dificuldades para trabalhar a nosso favor. Eu acho que esse formato ele vem para não sair nunca, mesmo quando o desfile presencial voltar, porque é uma forma de romper fronteiras e distâncias. Isso tem um lado mágico também. O desfile vai entrar na casa de um número maior de pessoas ao mesmo tempo, quando ali na sala de desfiles eram 500 pessoas assistindo, mas ela, de certa forma, já acontecia de forma digital porque era o desfile que entrava pelo Instagram. E agora não. O estilista ele tem liberdade e com essa liberdade talvez até por pressão desses novos tempos é a moda rompendo o limite, estabelecendo diálogo com o cinema, com a história, com vídeo, roteiro, e com outros formatos. Eu acho que nessa história ganharemos todos.
OP: Por fim, qual seu sentimento cada vez que você bebe ainda mais de cultura e tem a oportunidade de dimensioná-la indo além, partilhando como DNA vivo e autêntico, em outras linguagens, como a moda?
Ronaldo: Eu saio extremamente fortalecido todas as vezes que eu faço uma coleção desse grupo chamado etnográficas, em que eu vou para determinado lugar e faço ali o papel de ponte entre um Brasil tão diferente, tão distante e desconhecido por todos nós. Sobretudo o Cariri cearense, em que a ignorância do maior número de brasileiros, leva a crer e imaginar um lugar seco, árido, mas não imaginam que o Cariri cearense é um pulmão do Ceará. E ali tem uma natureza poderosa, viva, não que não exista na caatinga, que a caatinga não seja uma vegetação também viva e poderosa que eu tanto amo, mas no Cariri cearense tem água, tem cachoeiras, tem aquela Chapada maravilhosa que é a Chapada do Araripe, sabe? Aquilo ali é uma entidade quase. E essa entidade que eu levo para sempre comigo, pro meu trabalho, para minha vida.
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Onde assistir
Coleção "Terra de Gigantes", Ronaldo Fraga em parceria com Sistema Fecomércio
São Paulo Fashion Week
Quando: Dia 23, quarta-feira, às 18h30
Transmissão: No canal do SPFW no YouTube