"Minha irmã viajou para São Paulo e desde ontem parou de dar notícias. Estou preocupada! Alguém teve contato com ela?", cutucou Lucinda nas redes sociais. Numa sexta-feira qualquer, horas antes, Lucinda recebera uma mensagem de áudio no celular: "Desculpa ter te ligado tanto, mas é que estou preocupada. A Viviana e eu tínhamos marcado de encontrar hoje, e ela não apareceu". Deve ser um golpe novo, cogitara a irmã mais velha. A preocupação, no entanto, logo deu lugar à certeza: Viviana, a caçula, sumiu.
Com o objetivo de descobrir o paradeiro da irmã mais nova, Lucinda revirou o apartamento e fez buscas no computador dela. Ao mergulhar na intimidade de caçula, contudo, a mais velha descobriu uma Viviana que até então desconhecia. "Onde você estava quando isso aconteceu?". Novo suspense psicológico da escritora e tradutora carioca Simone Campos lançado pela editora Companhia das Letras, "Nada vai acontecer com você" (2021) é um contundente thriller que atravessa a condição feminina na sociedade.
Protagonizado por mulheres complexas, o romance aborda temas como violências físicas e psicológicas, bissexualidade, abandono parental e aborto em meio ao mistério do desaparecimento. Autora de obras como a ficção científica online "Penados y rebeldes" (2007) e do livro interativo "OWNED - Um novo jogador" (2011), inspirado na cultura dos videogames, Simone é graduada em jornalismo e produção editorial e mestre e doutora em Teoria da Literatura e Literatura.
O POVO: "Nada vai acontecer com você" é seu primeiro romance de suspense. Como foi o processo de criação dessa obra que une o mistério de um desaparecimento, uma investigação policial e os impasses de uma relação fraternal?
Simone Campos: Eu achei que estava escrevendo uma novela, mas acabou tendo tamanho e sustância de romance. Comecei em 2015; entreguei o livro em outubro de 2018 à editora. A demora foi efeito do doutorado em letras na Uerj, que terminei e que foi uma realização para mim. Com o livro entregue, tivemos várias rodadas de edição (com Alice Sant'Anna e Luara França), e o livro devia ter sido lançado em maio de 2020, mas a pandemia atrapalhou. Comecei como sempre começo, com trechos soltos que começam a me sugerir uma trama, no esquema "ligue os pontos". Conforme a história ganhava corpo, eu fiquei com uma ideia de que um banco de imagens brasileiro seria central ao livro; acabou não sendo, mas foi determinante para a caracterização das personagens. Um banco de imagens com "caras brasileiras" teria modelos não brancas; se a Vivi não fosse branca, nem sua irmã nem sua mãe seriam, e a experiência delas seria diversa da minha. Eu parei um pouco de escrever e fui ler, estudar e ouvir sobre a experiência de gente não branca para evitar falar grandes besteiras. Voltei a escrever. Depois percebi que a cadeia de causalidades do livro estava um pouco frouxa para um thriller. Parei de novo, escrevi uma linha do tempo, reorganizei o livro todo num novo arquivo de Word. Foi aí que a segunda parte, sob ponto de vista de uma personagem diferente, decolou. Escrevi muito rápido esta parte. Por último, alinhei também a idade das duas irmãs nos diversos flashbacks, as referências culturais de cada época, as tecnologias... foi divertido colocar os anos 1990 e 2000 tão vivazes nas páginas.
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OP: Logo no início do enredo, Lucinda descobre que alguém tirou uma foto do próprio pênis ereto com o celular dela. Essas violentas invasões masculinas ao corpo e ao espaço das mulheres perpassam toda a trama das irmãs — e chegam ao auge com a objetificação de Viviana. Para você, Simone, qual é a relevância de abordar os efeitos do patriarcado na sociedade brasileira em um thriller?
Simone: Toda sociedade que ainda procure alimentar o mito da mocinha que é resgatada pelo príncipe, casa com ele e vive feliz para sempre precisa de um choque de realidade. A "mocinha" talvez não queira nada disso, e nem precise ser salva. O "príncipe" virou um chato, como dizia Cássia Eller. Pior, o suposto príncipe pode ser um abusador que crê piamente que está fazendo um favor à vítima e que não fez nada de errado em abusar dela. A narrativa criada pelo patriarcado cria inúmeras brechas para essas invasões ao corpo e espaço das mulheres, e os homens são educados a não enxergar, a dissimular ou não se importar. E ainda estimulam os outros homens a fazer, ou passam pano para o amigo que fez. Assim, a mulher passa pela vida tentando evitar ou curar traumas profundos causados por homens, traumas que os homens - e até outras mulheres sofrendo traumas similares! - são treinados para nem sequer registrar. Mesmo quando são os causadores diretos. Há sempre desculpas para pintar uma mulher como indigna de humanidade e respeito. Estava no lugar errado, com a roupa errada, o comportamento errado... Quando resolvem raramente se importar com a mulher que sofreu algum abuso, esta mulher geralmente é branca, hétero, e é pintada pela mídia como modesta, bem comportada, com um trabalho considerado "honesto" e com vida sexual inexistente - esta mulher não merecia! O recado subliminar está dado: se você não for uma dessas coisas, uminha que seja, você "merece". Escrevendo com a voz da Vivi, que não é nenhuma dessas coisas, tentei gerar identificação do leitor e da leitora com uma mulher que não é nenhuma dessas coisas. Os suspeitos do crime -- o fotógrafo metido a sedutor, o "príncipe" do agronegócio, o pai que não paga pensão, o humorista que se acha boa gente mas passa pano para o amigo racista - também vão gerar identificação em muitas pessoas. Quem sabe assim posso levar o(a) leitor(a) a repensar certos valores.
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OP: Lucinda e Viviana foram criadas juntas, dividiram a mesma casa, o mesmo gosto musical, o mesmo humor — mas, quando cresceram, seguiram rumos muito diversos: Lucinda, com esse nome que "cheirava a anáguas e romances de cavalaria" e Viviana, uma "party girl" que é o sonho desse homem misógino e mediano. Onde as trajetórias das irmãs se encontram? O que une essas mulheres?
Simone: Elas se complementam em suas forças e suas fraquezas. Elas sofreram de formas diferentes enquanto cresciam e uma via a outra sofrer, mas, adolescentes que eram, eram muito autocentradas; depois dessa fase, uma irmã vira algo que vem às vezes na sua cabeça, uma cumplicidade, um estender a mão quando a outra precisa - nem que seja no simples ato de cuidar da casa, do gato e das plantas enquanto a outra viaja. A verdade é que no momento em que o livro começa, há um distanciamento entre as duas - mas a crise as reaproxima com força redobrada. Elas se re-conhecem... o que é bonito e também sofrido, pois resgatar certas lembranças pode machucar. Lucinda revê-las depois de adulta e com as novas informações que descobriu traz uma nova perspectiva sobre Viviana, sobre o resto da família, mas também sobre si mesma. Depois, temos a perspectiva inversa: Lucinda pelos olhos de Vivi. Eu poderia falar em sororidade aqui - mas um dos livros que li na pesquisa para escrever este, por tratar de personagens não brancas, foi o Dororidade, de Vilma Piedade. Acho que é um termo melhor para o elo que une essas irmãs.
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OP: Vários aspectos da obra nos lembram de mulheres que nós conhecemos hoje, com inseguranças e inadequações que ora se evidenciam, ora se escondem em postagens nas redes sociais. Esse interesse no digital está presente em outras de sua autoria — como no livro interativo "OWNED - Um novo jogador" — e também na sua pesquisa acadêmica sobre videogames. Como a tecnologia se constrói no seu fazer literário?
Simone: Tenho uma visão muito cibernética do funcionamento da literatura. A ficção é como um software escrito para rodar no hardware humano. De acordo com a teoria da recepção, do alemão Wolfgang Iser, o sentido da ficção não está no texto, e sim na interação entre texto e leitor - vistos como um sistema. Por isso, ao escrever eu sempre penso: como isso vai funcionar ao passar em outras cabeças? Que "filme" ela vai ver enquanto lê? Outra coisa preciosa que o Iser fala: que a literatura tem o potencial (não a certeza!) de nos fazer rever nossos sistemas de valores. Essa é uma das minhas esperanças para esse livro. A tecnologia que usamos e que nos molda de volta é um tema rico que muitos escritores hesitam em explorar, mas eu adoro. Além disso, para mim, como artista, tecnologias são mídias, as quais quero conhecer e explorar em suas potencialidades. Eu estudei a tecnologia livro a fundo quando fiz graduação em produção editorial e trabalhei em editoras, além de colaborar em muitas capas dos meus livros; depois, me interessei por criar uma leitura que fosse onde o leitor está - na internet, no caso - e apresentei o projeto do OWNED à Petrobras Cultural. Foi muito bom poder parar tudo e escrever só aquilo por um tempo. Sempre me sustentei com outros trabalhos, como a tradução. Agora estou chegando num ponto de poder escolher só escrever, uma liberdade que foi tão almejada que às vezes não sei o que fazer com ela. Mas logo sai outro livro... Recentemente escrevi uma adaptação de um livro meu, A feia noite, para longa-metragem a pedido do José Eduardo Belmonte, diretor. Estou torcendo para que chegue à tela. Pensar em termos de algo que terá, além de texto, imagem e som também é fabuloso.
Nada vai acontecer com você, Simone Campos
De Simone Campos
Gênero: suspense psicológico
Ano de lançamento: 2021
Número de páginas: 192
Editora: Companhia das Letras (companhiadasletras.com.br)
Quanto: R$59,90 (físico); R$39,90 (e-book)
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