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Mulheres complexas e envolventes protagonizam livro de Simone Campos
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Mulheres complexas e envolventes protagonizam livro de Simone Campos

Sexto livro da escritora e tradutora carioca Simone Campos, "Nada vai acontecer com você" é protagonizado por personagens femininas complexas
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Sexto livro de Simone Campos, o romance
Foto: Renato Parada/ Divulgação Sexto livro de Simone Campos, o romance "Nada vai acontecer com você" conta a história de duas irmãs

"Minha irmã viajou para São Paulo e desde ontem parou de dar notícias. Estou preocupada! Alguém teve contato com ela?", cutucou Lucinda nas redes sociais. Numa sexta-feira qualquer, horas antes, Lucinda recebera uma mensagem de áudio no celular: "Desculpa ter te ligado tanto, mas é que estou preocupada. A Viviana e eu tínhamos marcado de encontrar hoje, e ela não apareceu". Deve ser um golpe novo, cogitara a irmã mais velha. A preocupação, no entanto, logo deu lugar à certeza: Viviana, a caçula, sumiu.

Com o objetivo de descobrir o paradeiro da irmã mais nova, Lucinda revirou o apartamento e fez buscas no computador dela. Ao mergulhar na intimidade de caçula, contudo, a mais velha descobriu uma Viviana que até então desconhecia. "Onde você estava quando isso aconteceu?". Novo suspense psicológico da escritora e tradutora carioca Simone Campos lançado pela editora Companhia das Letras, "Nada vai acontecer com você" (2021) é um contundente thriller que atravessa a condição feminina na sociedade.

Protagonizado por mulheres complexas, o romance aborda temas como violências físicas e psicológicas, bissexualidade, abandono parental e aborto em meio ao mistério do desaparecimento. Autora de obras como a ficção científica online "Penados y rebeldes" (2007) e do livro interativo "OWNED - Um novo jogador" (2011), inspirado na cultura dos videogames, Simone é graduada em jornalismo e produção editorial e mestre e doutora em Teoria da Literatura e Literatura.

O POVO: "Nada vai acontecer com você" é seu primeiro romance de suspense. Como foi o processo de criação dessa obra que une o mistério de um desaparecimento, uma investigação policial e os impasses de uma relação fraternal?
Simone Campos: Eu achei que estava escrevendo uma novela, mas acabou tendo tamanho e sustância de romance. Comecei em 2015; entreguei o livro em outubro de 2018 à editora. A demora foi efeito do doutorado em letras na Uerj, que terminei e que foi uma realização para mim. Com o livro entregue, tivemos várias rodadas de edição (com Alice Sant'Anna e Luara França), e o livro devia ter sido lançado em maio de 2020, mas a pandemia atrapalhou. Comecei como sempre começo, com trechos soltos que começam a me sugerir uma trama, no esquema "ligue os pontos". Conforme a história ganhava corpo, eu fiquei com uma ideia de que um banco de imagens brasileiro seria central ao livro; acabou não sendo, mas foi determinante para a caracterização das personagens. Um banco de imagens com "caras brasileiras" teria modelos não brancas; se a Vivi não fosse branca, nem sua irmã nem sua mãe seriam, e a experiência delas seria diversa da minha. Eu parei um pouco de escrever e fui ler, estudar e ouvir sobre a experiência de gente não branca para evitar falar grandes besteiras. Voltei a escrever. Depois percebi que a cadeia de causalidades do livro estava um pouco frouxa para um thriller. Parei de novo, escrevi uma linha do tempo, reorganizei o livro todo num novo arquivo de Word. Foi aí que a segunda parte, sob ponto de vista de uma personagem diferente, decolou. Escrevi muito rápido esta parte. Por último, alinhei também a idade das duas irmãs nos diversos flashbacks, as referências culturais de cada época, as tecnologias... foi divertido colocar os anos 1990 e 2000 tão vivazes nas páginas.

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OP: Logo no início do enredo, Lucinda descobre que alguém tirou uma foto do próprio pênis ereto com o celular dela. Essas violentas invasões masculinas ao corpo e ao espaço das mulheres perpassam toda a trama das irmãs — e chegam ao auge com a objetificação de Viviana. Para você, Simone, qual é a relevância de abordar os efeitos do patriarcado na sociedade brasileira em um thriller?
Simone: Toda sociedade que ainda procure alimentar o mito da mocinha que é resgatada pelo príncipe, casa com ele e vive feliz para sempre precisa de um choque de realidade. A "mocinha" talvez não queira nada disso, e nem precise ser salva. O "príncipe" virou um chato, como dizia Cássia Eller. Pior, o suposto príncipe pode ser um abusador que crê piamente que está fazendo um favor à vítima e que não fez nada de errado em abusar dela. A narrativa criada pelo patriarcado cria inúmeras brechas para essas invasões ao corpo e espaço das mulheres, e os homens são educados a não enxergar, a dissimular ou não se importar. E ainda estimulam os outros homens a fazer, ou passam pano para o amigo que fez. Assim, a mulher passa pela vida tentando evitar ou curar traumas profundos causados por homens, traumas que os homens - e até outras mulheres sofrendo traumas similares! - são treinados para nem sequer registrar. Mesmo quando são os causadores diretos. Há sempre desculpas para pintar uma mulher como indigna de humanidade e respeito. Estava no lugar errado, com a roupa errada, o comportamento errado... Quando resolvem raramente se importar com a mulher que sofreu algum abuso, esta mulher geralmente é branca, hétero, e é pintada pela mídia como modesta, bem comportada, com um trabalho considerado "honesto" e com vida sexual inexistente - esta mulher não merecia! O recado subliminar está dado: se você não for uma dessas coisas, uminha que seja, você "merece". Escrevendo com a voz da Vivi, que não é nenhuma dessas coisas, tentei gerar identificação do leitor e da leitora com uma mulher que não é nenhuma dessas coisas. Os suspeitos do crime -- o fotógrafo metido a sedutor, o "príncipe" do agronegócio, o pai que não paga pensão, o humorista que se acha boa gente mas passa pano para o amigo racista - também vão gerar identificação em muitas pessoas. Quem sabe assim posso levar o(a) leitor(a) a repensar certos valores.

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OP: Lucinda e Viviana foram criadas juntas, dividiram a mesma casa, o mesmo gosto musical, o mesmo humor — mas, quando cresceram, seguiram rumos muito diversos: Lucinda, com esse nome que "cheirava a anáguas e romances de cavalaria" e Viviana, uma "party girl" que é o sonho desse homem misógino e mediano. Onde as trajetórias das irmãs se encontram? O que une essas mulheres?
Simone: Elas se complementam em suas forças e suas fraquezas. Elas sofreram de formas diferentes enquanto cresciam e uma via a outra sofrer, mas, adolescentes que eram, eram muito autocentradas; depois dessa fase, uma irmã vira algo que vem às vezes na sua cabeça, uma cumplicidade, um estender a mão quando a outra precisa - nem que seja no simples ato de cuidar da casa, do gato e das plantas enquanto a outra viaja. A verdade é que no momento em que o livro começa, há um distanciamento entre as duas - mas a crise as reaproxima com força redobrada. Elas se re-conhecem... o que é bonito e também sofrido, pois resgatar certas lembranças pode machucar. Lucinda revê-las depois de adulta e com as novas informações que descobriu traz uma nova perspectiva sobre Viviana, sobre o resto da família, mas também sobre si mesma. Depois, temos a perspectiva inversa: Lucinda pelos olhos de Vivi. Eu poderia falar em sororidade aqui - mas um dos livros que li na pesquisa para escrever este, por tratar de personagens não brancas, foi o Dororidade, de Vilma Piedade. Acho que é um termo melhor para o elo que une essas irmãs.

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OP: Vários aspectos da obra nos lembram de mulheres que nós conhecemos hoje, com inseguranças e inadequações que ora se evidenciam, ora se escondem em postagens nas redes sociais. Esse interesse no digital está presente em outras de sua autoria — como no livro interativo "OWNED - Um novo jogador" — e também na sua pesquisa acadêmica sobre videogames. Como a tecnologia se constrói no seu fazer literário?
Simone: Tenho uma visão muito cibernética do funcionamento da literatura. A ficção é como um software escrito para rodar no hardware humano. De acordo com a teoria da recepção, do alemão Wolfgang Iser, o sentido da ficção não está no texto, e sim na interação entre texto e leitor - vistos como um sistema. Por isso, ao escrever eu sempre penso: como isso vai funcionar ao passar em outras cabeças? Que "filme" ela vai ver enquanto lê? Outra coisa preciosa que o Iser fala: que a literatura tem o potencial (não a certeza!) de nos fazer rever nossos sistemas de valores. Essa é uma das minhas esperanças para esse livro. A tecnologia que usamos e que nos molda de volta é um tema rico que muitos escritores hesitam em explorar, mas eu adoro. Além disso, para mim, como artista, tecnologias são mídias, as quais quero conhecer e explorar em suas potencialidades. Eu estudei a tecnologia livro a fundo quando fiz graduação em produção editorial e trabalhei em editoras, além de colaborar em muitas capas dos meus livros; depois, me interessei por criar uma leitura que fosse onde o leitor está - na internet, no caso - e apresentei o projeto do OWNED à Petrobras Cultural. Foi muito bom poder parar tudo e escrever só aquilo por um tempo. Sempre me sustentei com outros trabalhos, como a tradução. Agora estou chegando num ponto de poder escolher só escrever, uma liberdade que foi tão almejada que às vezes não sei o que fazer com ela. Mas logo sai outro livro... Recentemente escrevi uma adaptação de um livro meu, A feia noite, para longa-metragem a pedido do José Eduardo Belmonte, diretor. Estou torcendo para que chegue à tela. Pensar em termos de algo que terá, além de texto, imagem e som também é fabuloso.

Ao se dar conta do sumiço da irmã, Lucinda não vai medir esforços para descobrir seu paradeiro. Mas, nessa busca atribulada, ela vai encontrar muito mais do que estava procurando. Novo livro de Simone Campos,
Ao se dar conta do sumiço da irmã, Lucinda não vai medir esforços para descobrir seu paradeiro. Mas, nessa busca atribulada, ela vai encontrar muito mais do que estava procurando. Novo livro de Simone Campos, "Nada vai acontecer com você" é um suspense de tirar o fôlego sobre intimidade, segredos, violência e falsas aparências.

Nada vai acontecer com você, Simone Campos

De Simone Campos
Gênero: suspense psicológico
Ano de lançamento: 2021
Número de páginas: 192
Editora: Companhia das Letras (companhiadasletras.com.br)
Quanto: R$59,90 (físico); R$39,90 (e-book)

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