Além de trazer saborosos causos frutos de um modo irreverente de viver e de funcionar como um seminal resgate da história da animação no Brasil, "Nem Doeu", a autobiografia de Otto Guerra lançada pela editora Mmarte e subtitulada por ele mesmo de Autopornografia, é um estudo sobre como ser "álcooldidata" no cinema latino-americano.
Aos 65 anos, o realizador de "Wood & Stock - Sexo, Orégano & Rock'n'roll" (2006) resolveu abrir o baú das memórias - "Fiz antes de a bebida levar todos os meus neurônios", confessa - em forma de um livro de recordações e digressões. Gaúcho de Porto Alegre, nascido em 1956, ele dá o tom jocoso de suas andanças pela vida já na epígrafe, em que usou uma frase do diretor Domingos de Oliveira (1935-2019): "O humor é a única forma de falar sério da vida".
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"O padrão para minha família era ser médico, advogado, engenheiro. Meu irmão é médico. Quando fiz um comercial para a Coca-Cola, ganhei muito mais grana que ele e minha mãe disse: 'Meu filho é um gênio!'. Antes eu era o pior, era a ovelha negra. Esses padrões da nossa civilização de dinheiro estão ferrando com tudo. Não que eu não goste de dinheiro, mas não é o objetivo, que é fazer filmes", diz.
A agenda de Otto para o futuro anda movimentada, pois tem dois longas aprovados para desenvolver. Mas, no passado, o realizador passou por duras situações. "Eu revelava os filmes, na década de 1980, em São Paulo, no laboratório Líder. Aproveitei uma viagem e levei uma fita com o primeiro curta que eu havia feito, "O Natal do Burrinho", para Mauricio de Sousa. Ele não me recebeu porque eu deveria ter marcado hora. Fui ao banheiro e chegou um cara do meu lado. Era o próprio Mauricio de Sousa. Ali mesmo, eu disse: 'Oi! Sou de Porto Alegre'. Mauricio perguntou o que eu queria. 'Faço desenho animado em Porto Alegre e trouxe um filme'. Ele respondeu: 'Desenho animado! Então vem comigo'. Ele me levou para a sua sala e, depois, a gente fez um longa dos Trapalhões, que ele produziu, mais uma série da Mônica", conta Otto.
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As situações descritas em "Nem Doeu" são a cartografia de um artista cuja vida pessoal e a atividade em uma produtora se misturam. "No livro, afirmo que o estúdio não passa da continuação do meu quarto de infância, contando histórias, escrevendo e desenhando quadrinhos", diz Otto, lembrando de tempos difíceis. "Desanimei bastante nos anos 1990, quando fiz muito comercial - foram cerca de 600. Meu desenho ficou pasteurizado e parei. Com os editais, a situação voltou a se aquecer e nosso cinema disparou. Embalamos com Wood & Stock e não paramos mais. Estou gostando de trabalhar no roteiro do longa baseado no "Nem Doeu" e voltei até a desenhar".
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