Há 14 anos foi lançado o álbum “Amor e Caos”. A obra marcava a estreia da cantora e compositora paulista Ana Cañas em um trabalho de estúdio. Entretanto, seus caminhos na música já eram trilhados antes disso: em 2005, por exemplo, protagonizou o musical “Mais Ardido Que Pimenta”, baseado na obra de Elis Regina. As interpretações não pararam por aí, e Ana se destacou cantando jazz e MPB nas noites de São Paulo. Sua carreira seguiu, realizando mais discos de estúdio com suas composições. Neste mês, porém, ela retornou ao seu lado intérprete ao lançar “Ana Cañas Canta Belchior - EP 1”, com releituras da obra do cantor cearense Belchior. Em entrevista exclusiva ao Vida&Arte, ela falou sobre o processo de criação do projeto, sua carreira e também sobre a condução do governo em relação à cultura e à pandemia no Brasil.

O trabalho é o primeiro disco de Ana somente como intérprete. A cantora, que já fez parcerias com artistas como Arnaldo Antunes e Nando Reis em “Pra Você Guardei o Amor”, traz nesse disco uma ramificação de uma live feita em 2020, quando cantou músicas de Belchior. Nesse EP, estão releituras marcadas por intensidades, suavidades e sentidos das canções “Alucinação”, “Velha Roupa Colorida”, “Galos, Noites e Quintais” e “Na Hora do Almoço”.

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O mergulho no trabalho do artista vem há cerca de cinco anos. “Eu sempre incluía ‘Alucinação’, ‘Velha Roupa Colorida’... São músicas que trazem as temáticas dessas dicotomias humanas, políticas. De certa forma são músicas que atravessam esses lugares do alicerce humano, do que nos traduz”, comenta Ana Cañas.

A cantora comenta a dificuldade de concretizar a iniciativa do disco - dividido em EPs - em homenagem ao Belchior. Para ela, o cearense é “um cara muito difícil de ser interpretado por conta de sua densidade e poética”, e, além disso, havia a comparação com gravações famosas de outros artistas, como Elis Regina e Elba Ramalho.

“Quando eu estava de frente para o microfone para gravar algumas canções, eu fiquei um pouco nervosa. Foi algo bastante emocionante e desafiador para mim, porque eu tive que achar um lugar ou outro que não fosse o da Elis, mas que também trouxesse a emoção da letra”, relata.

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Com o disco, Cañas deseja que outras pessoas também mergulhem na discografia do cearense: “Belchior é uma figura que eu tenho uma paixão pela vida e pela obra. É uma figura muito interessante. Quanto mais nós jogarmos luz sobre a obra dele, melhor. Não só eu como intérprete, mas também livros, séries, filmes, documentários, enfim, acho que tudo é válido quando se trata do Belchior e da imensidão da sua obra”.

Uma das marcas na trajetória de Ana Cañas é seu posicionamento a respeito de questões sociais, com canções em defesa de minorias oprimidas no Brasil - como no álbum “Todxs” (2018), indicado ao Grammy Latino - e luta por direitos. Essa postura a acompanha há muito tempo: a artista se considera uma pessoa “que sempre foi interessada pelo coletivo”. Em sua caminhada, Ana Cañas já chegou a passar por momentos de grande vulnerabilidade financeira, chegando a ter somente dois reais para comer em um dia.

Hoje, na pandemia, sente que o cenário tem sido muito difícil para a classe artística. “A nossa grande fonte de renda e subsistência são os shows. Nós não vivemos de direitos autorais nem de venda de discos há muito tempo, então tem sido muito difícil, porque, além desse cenário, tem a falta de apoio governamental, de subsídios e projetos para fomentar a classe artística”, relata.

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A pesquisa “Hábitos Culturais II”, realizada em conjunto pelo Itaú Cultural e pelo Datafolha, trouxe como uma de suas conclusões a informação de que os brasileiros aumentaram o consumo de atividades culturais na internet durante a pandemia. Além disso, o consumo de apresentações artísticas de teatro, dança e música nesse ambiente dobrou em 2021, alcançando 40% dos entrevistados, contra 20% relatados em 2020.

Com os olhares atentos para a relevância da cultura, principalmente em um contexto de pandemia e isolamento social, Ana Cañas reforça o pensamento de que os artistas são “fundamentais” para a sociedade, atingindo pontos que vão além do entretenimento: “Os artistas também trazem reflexões e questionamentos. A arte tem um papel fundamental na formação do nosso caráter, de como somos como seres humanos”.

Diante disso, ela lamenta o tratamento dado à cultura nos últimos tempos, uma área “relegada a quase como algo sem importância”. Nesse sentido, Ana Cañas aponta para um projeto político de “desmonte do pensamento”, que “tira a cultura do centro e deixa as pessoas à deriva”.

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A instabilidade na cultura se agravou na pandemia e contínuas reduções no orçamento para o setor ajudam a reforçar os pontos levantados. A condução do governo federal durante esse período, porém, não é criticada apenas por essa área. O descontentamento reflete também no modo como a pandemia tem sido tratada pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido).

Em um cenário com quase 550 mil pessoas que faleceram devido à Covid-19, não é mais cabível, para Ana Cañas, ter um posicionamento “isento”: “Eu acho que não é cabível mais demonstrar isenção. Mais de meio milhão de pessoas morreram. Temos que ter muito cuidado para falar sobre isso, porque não estamos mais em um momento ‘entre direita e esquerda’, estamos em um momento entre democracia e não democracia”.

Ela continua: “É um governo que não tem diálogo, que não demonstra interesse pelas pessoas em situação de vulnerabilidade. Então, acho que é muita falta de compreensão e reflexão você achar que pode ter o direito de estar isento nesse momento, quando mais de 500 mil pessoas morreram por descaso, por não compra de vacinas, por não incentivo por parte do governo federal ao uso de máscaras”. Acrescenta: “É preciso reflexão e entender que o papel do artista não é só entretenimento, ele influencia o público que o acompanha. É muito importante nesse momento nos posicionarmos a favor da democracia”.

Olhando para o futuro de sua carreira, Ana Cañas tem planos para os próximos tempos: o mais imediato, sem dúvidas, é o de finalizar o disco completo de homenagem ao Belchior. Além dos trabalhos ligados a ele, Ana Cañas pretende lançar - em estimativas para 2023 - um novo disco autoral, com canções de tempos anteriores ao projeto do tributo.

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Imaginando um cenário com condições sanitárias seguras, há também o desejo de realizar uma turnê Brasil afora - alcançando também o Ceará - trazendo para perto do público as releituras do cantor cearense: “O Belchior é um cara amado pelo País todo, eu já percebi isso. Eu quero viver bastante essa emoção de troca com o público desse repertório”, ressalta Ana Cañas.

O POVO MAIS

Ana Cañas participa do 6º episódio do Vida&Arte Convida, disponível a partir deste sábado, 24, na seção “Séries e Docs” do O POVO+. Na entrevista, ela repercute seu último trabalho lançado, sua carreira, a conduta do governo federal diante da pandemia e projetos futuros.

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