Logo no início, a narradora de "O lugar", que se intui seja também a autora Annie Ernaux, admite: "Só há pouco percebi que escrever o romance é impossível". Então elucida a razão desse impedimento: "Para contar a história de uma vida regida pela necessidade, não posso assumir, de saída, um ponto de vista artístico, nem tentar fazer alguma coisa 'cativante' ou 'comovente'".
A história que Ernaux repassa é a morte e a vida do pai, um homem pobre para quem o mundo simbólico e artístico da filha não significava nada. Trabalhador rural que comprara uma casa e a transformara em mercearia-café ainda muito jovem, numa cidade francesa distante poucos quilômetros de Paris. Chefe de família austero cujo orgulho era não invejar o alheio.
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Eram os anos 1940, e a rotina laboral do pai, mesmo marcada pela escassez, permitiria à filha estudar, formar-se professora e, segundo suas próprias palavras, deixar para trás aquele mundo antigo e rústico: o mundo paterno, feito de poucas palavras, no qual se sabia o custo de cada coisa e o medo de parecer deslocado socialmente espreitava a todo instante.
Publicado em 1983 e vencedor do prêmio Renaudot, um dos mais prestigiados da França, "O lugar" é o cartão de visitas da editora Fósforo, que chega ao mercado com uma ótima cartela de livros. É também a obra que lançou as bases da literatura de Ernaux, que transita entre memória, história e escrita ficcional, num entrelugar que potencializa cada um desses registros.
Numa espécie de "autossobiografia", a autora revisita não os fatos mais marcantes da família, situando-os cronologicamente ou seguindo uma ordem hierárquica mediante a qual procura acertar contas com um passado.
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O reencontro de Ernaux com o pai dá-se noutra chave: a da aceitação de que nenhuma herança se extravia, mesmo quando negada ou recalcada.
Ou, como ela escreve perto do fim: "Eu acabei me reencontrando com a herança que tive de deixar do lado de fora do mundo burguês e instruído quando entrei nele".
Ao aproximar-se do pai, a narradora em primeira pessoa revê igualmente sua trajetória, da classe pobre e inculta, passando pela aceitação no magistério e depois o ingresso na faculdade de educação, até a entrada no que considera como círculo burguês, com seus valores e uma linguagem próprios e inconciliáveis com o universo do qual ela vinha e ao qual procurava esconder. Eram códigos de vergonha aqueles que havia trazido consigo.
Esse lugar ao qual o romance se refere, portanto, é o solo para onde se volta muito tempo depois, já morto o pai. Nele descobre que essas pontes com o que era familiar foram tacitamente desfeitas. Mas sempre há algo que resta, um vestígio, um rumor distante, um gesto em suspenso.
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São essas pegadas que a autora reúne para remontar não só a figura do progenitor, um desenho de seu rosto severo, mas para entender como se tornou uma estranha, como ela e o pai passaram a falar numa gramática diferente.
"Vou recolher as falas, os gestos, os gostos do meu pai", anuncia a autora, acrescentando: "Nada de memória poética, nem de ironia grandiloquente. Percebo que começa a vir com naturalidade uma escrita neutra".
Esse tom de neutralidade, que marcará toda a sua literatura dali em diante e a distinguirá no panorama francês, não se confunde, porém, com sensaboria, com insipidez. Em 70 páginas, Ernaux justifica o entusiasmo com que seu trabalho é recebido hoje. O que se lê é um relato terno, nem amargo nem edulcorado, que partem de laços afetivos para examinar questões de classe e culturais.
Ao pretender simular o tom das cartas que trocava com a mãe e o pai quando ainda estudava e experimentava uma expansão de seu mundo, uma troca destituída de nuances, quase sempre informativa e pontual, a autora se concentra no que há de mais significativo. O resultado é um livro poderoso e emocionante.
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"Naturalmente, não sinto alegria escrevendo este livro", reconhece Ernaux. Mais adiante, afirma: "Enquanto me esforço pra reconstruir a trama de significados de uma vida, levando em conta acontecimentos e escolhas, tenho a sensação de que vou perdendo, na essência, a figura do meu pai".
Ao final, Ernaux não tem certeza de tê-lo recuperado. Mas o caminho percorrido e suas lacunas talvez falem mais sobre o tronco de que cada um de nós descende do que retratos bem-acabados e sem nódoas.
Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela UFC
Editora combina ensaísmo, ficção e divulgação científica em seu catálogo
Nova na praça, a editora Fósforo nasce sob o signo da transdisciplinaridade. Com um catálogo ainda enxuto, mas muito rico, a casa, comandada por Fernanda Diamant, Rita Mattar e Luís Francisco Carvalho Filho, aposta na diversidade de gêneros para cativar o leitor de hoje.Um exemplo disso é a pedra de lançamento da marca, o romance "O lugar", da francesa Annie Ernaux, cuja obra, celebrada no mundo inteiro, ainda era novidade no Brasil. Com tradução de Marília Garcia, a narrativa é o carro-chefe dessa primeira fornada da Fósforo.
Mas vem mais pela frente. "Os anos", talvez o romance mais conhecido de Ernaux, acaba de sair pela editora, que o adquiriu do espólio da Três Estrelas.Essa é, aliás, uma das vertentes da Fósforo, cujo acervo deve se compor de parte dos trabalhos já publicados ou em projeto da antiga editora.Uma de suas criadoras, a ex-curadora da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), Fernanda Diamant, fala que a ideia é "seguir um pouco o que a Três Estrelas tinha: não ficção, jornalismo, ensaio e divulgação científica".Segundo ela, "tudo foi misturado para dar nisso que estamos chamando de livros bem editados e boas histórias".
"São livros bem feitos, que sejam interessantes. A gente não quis fazer uma coisa 'nichada'", explica. Mesmo os títulos de "divulgação científica", responde Diamant, "devem ser para um público amplo"."Queremos uma editora com uma cara mais geral, que navega por várias disciplinas. E acho que isso já está nos primeiros lançamentos. Temos Annie Ernaux, que é uma autoficção sociológica, que está numa fronteira. É difícil até achar lugar para ele. O livro "O cometa" (outro lançamento) tem uma ficção científica e um ensaio sobre ela juntos", conclui.Romance de W.E.B. Du Bois, "O cometa" narra os momentos que se sucedem à queda de um meteoro sobre a Terra, evento do qual sobrevivem apenas um homem negro e uma mulher branca. Pré-apocalíptico, o livro fabula as tensões que, muito tempo depois, ainda marcariam a sociedade dos EUA e fora dali, como a brasileira. Daí sua atualidade.
Enriquece a edição comemorativa um ensaio da acadêmica Saidiya Hartman, que amplia a leitura sobre o trabalho de Du Bois, situando-o como um dos autores que anteciparam o "afropessimismo".A Fósforo também lança agora Nabokov em dose dupla. Autor de "Lolita", o escritor também tem farta publicação sobre autores russos e outros que pertencem ao cânone. "Lições de literatura" e "Lições de literatura russa", ambos da editora, saem em edição caprichada.Completam essa primeira rodada de lançamentos "Kentukis", da escritora argentina Samanta Schweblin; "Psiconautas", de Marcelo Leite; e "O 13 de Maio e outras estórias do pós-abolição", coletânea de Astolfo Marques organizada por Matheus Gato.
Estante de leituras
O parque das irmãs magníficas
De Camila Sosa Villada
Editora Tusquets, 208 páginas
Quanto: R$ 49,90
Campo Santo
De W. G. Sebald
Cia das Letras, 272 páginas.
Quanto: R$ 69,90
Correntes
De Olga Tokarczuk
Todavia, 400 páginas
Quanto: R$ 74,90
A extinção das abelhas
De Natalia Borges Polesso
Cia das Letras, 312 páginas
Quanto: R$ 69,90
Winnicott, experiência e paradoxo
De Tales Ab'Sáber
Ubu, 114 páginas
Quanto: R$ 49,90