"É dureza! Para dar gás: no Cairo tive vitória consagrada, rapaz, e rude". Ao 25 de maio de 2018, com esta postagem enigmática a uma leitura descuidada, Ricardo Cambraia ingressou no site de rede social Twitter como @OPalindromista; um operário do palíndromo. Mas antes de seguirem na costura das próximas linhas, leitores, a jornalista que vos escreve convida: leiam novamente o começo deste parágrafo. Agora, por gentileza, leiam ainda mais uma vez — da direita para a esquerda. Notaram? Palíndromo, segundo o dicionário Houaiss, designa “frase ou palavra que se pode ler, indiferentemente, da esquerda para direita ou vice-versa”: osso, Ana, radar… Mas vai além. Do grego palin (=de novo, com repetição, em sentido inverso) + dromo (=caminho, curso, pista), a figura encantou o mineiro de Campo Belo graduado em História e aposentado pelo no Tribunal de Contas da União. Palindromista com forte atuação virtual, Cambraia é autor do livro "O Palindromista" (2021), lançado pela Avá Editora.
"Consigo determinar com precisão o momento que um palíndromo me impactou pela primeira vez, para além dos já tradicionais 'Amor a Roma' e quejandos. Nos idos de 1988, 1989, como dirigente sindical, ia frequentemente à Brasília para reuniões e negociações da pauta sindical com a direção do Banco do Brasil. Numa destas reuniões intermináveis, Joel Bueno, do Rio de Janeiro, distraía-se produzindo palíndromos e me cutucou. 'Cambraia, você sabe o que são palíndromos?' e me estendeu um papel com a seguinte frase: 'Até Reagan Sibarita tira Bisnaga Ereta'. Tratava-se de um famoso palíndromo de Chico Buarque de Holanda. A partir dali comecei minhas aventuras nessa praia e não consigo achar o caminho de volta", relembra. Nos últimos 10 anos, Cambraia dedicou-se com regularidade aos palíndromos — já postou cerca de 60 por dia no Twitter, onde acumula mais de 12 mil seguidores.
Entre os temas que consagraram Cambraia no cenário da palindromia nacional, as criações carregadas de crítica social e política se destacam. "Essa, aliás, creio que seja a marca que me distingue na cena palindrômica brasileira, o forte conteúdo crítico. No Twitter, a política é quase uma religião. Aquele ambiente respira política e, na prática, foi absolutamente natural fazer palíndromos com essa pegada. Um amigo chegou a dizer que eu faço nos palíndromos o que os chargistas políticos fazem no cartum — e acho a comparação bem adequada. No Instagram, optei inicialmente por postagens com menos foco em política strictu sensu, sem afastar contudo a crítica social. Hoje já faço no Instagram também a crítica política, porque seria uma omissão grave não denunciar a insensatez e os desmandos do atual titular do governo federal", destaca. Um dos palíndromos mais famosos do mineiro é “ame a danada ema”, publicado junto à foto do presidente Jair Bolsonaro exibindo uma caixa de cloroquina para uma… ema.
"Os palíndromos tem aplicações específicas nas ciências exatas, em particular na matemática, com desdobramentos práticos em tecnologia da informação e algoritmos. Isso implica na constituição de modelos matemáticos replicáveis", compara Cambraia. "No campo da escrita, acho mais adequado falar em simetria, espelhamento, reflexo. Por uma razão simples, desconheço, até aqui, qualquer modelo matemático que tenha aplicabilidade na constituição semântica de palíndromos linguísticos. Embora seja possível, como materializado num algoritmo concebido pelo mestre do Palíndromo Pedro Poitevin, gerar um número incomensurável de novos palíndromos a partir de uma sequência palíndrômica determinada (palíndromos prontos). Mas aqui estamos falando de intercalação de palíndromos concebidos sem qualquer regra matemática, como num jogo do tipo dominó. No campo da escrita, o que temos então é uma regra simples de espelhamento: o palíndromo exige que a mesma sequência de letras da frase seja idêntica da frente para trás e de trás para frente. E acho esse conceito mais preciso do que o que os dicionarizados. O palíndromo linguístico é aquele que volta com precisão sobre seus próprios passos (suas letras)".
Aos que desejam se aventurar no fascinante mundo dos palíndromos, Cambraia sugere: "A regra fundamental, e que permite construir palíndromos surpreendentes, é a observação. Colher o palíndromo na selva da cidade, na capa do jornal, na placa da oficina. A placa da oficina de amortecedores me deu este palíndromo: 'Ser ode? Cetro? Mares? Ser amortece dores'. Numa viagem ao Rio de Janeiro há uns anos, colhi no Morro da Urca mais um: 'A crua dor, romero ore, Morro da Urca'. Aquela cerveja puro malte do botequim da esquina rendeu essa pérola palíndrômica: 'O lúpulo'. Afora isso, na produção de um palíndromo para um tema determinado, temos que buscar palavras que chamam, pedem um palíndromo — sim, elas existem, e no meio as chamamos de 'parapalíndromas', como 'tropa', 'diva', 'azar', 'corte', 'social'... Assim, o essencial na prática é ter um bom glossário dessas palavrinhas mágicas", finaliza.