"Em Ercília, para estabelecer as ligações que orientam a vida da cidade, os habitantes estendem fios entre as arestas das casas, brancos ou pretos ou cinza ou pretos-e-brancos, de acordo com as relações". Em Fortaleza, como na cidade do romance "As cidades invisíveis" (1972) do italiano Italo Calvino, fios imagéticos ligam Bibliotecas de Iniciativa Popular localizadas em territórios periféricos: o Movimento Biblioteca Urgente é uma rede de apoio entre bibliotecas comunitárias articuladas para garantir políticas públicas de manutenção desses espaços.
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A campanha #bibliotecanazaria é composta por 12 Bibliotecas de Iniciativa Popular: Adianto, na Barra do Ceará; Okupação, no Antônio Bezerra; Viva, no Barroso; Livro Livre, no Curió; Filó, no Conjunto Santa Filomena; Bate Palmas, no Conjunto Palmeiras; Papoco de Ideias, no Pici; Quintal Cultural, no Bom Jardim; Espaço de Leitura GDFAM, no Planalto Pici; Viva a Palavra, na Serrinha; Casa Futuro, no Coaçu; e Periferia Que Lê, na Granja Lisboa. Os equipamentos culturais são mantidos pelas comunidades — muitos funcionam nas casas dos mediadores, outros dependem de aluguéis. As despesas com água, luz, Internet e preservação dos espaços se tornaram desafios ainda mais severos desde o início da pandemia de Covid-19.
A principal demanda do Movimento Biblioteca Urgente, portanto, é a inclusão de fomentos para bibliotecas comunitárias no Plano Plurianual de Fortaleza (PPA). Instrumento estabelecido pela Constituição Federal de 1988, o PPA é o planejamento que determina, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública estadual para as despesas de Capital e para relativas aos programas de duração continuada. "Assim, a gente garantiria pelo menos quatro anos de recursos nesse desenho estratégico para as 12 bibliotecas ou para mais — a gente tem necessidade de recursos de forma contínua e permanente", destaca o poeta e educador social Baticum Proletário, coordenador da Biblioteca Comunitária Okupação. Desde 2017, a Okupação atua no bairro Antônio Bezerra na promoção de acesso aos livros e à cultura. O equipamento conta também com um ponto de leitura chamado Geladeiroteca e realiza o Sarau Okupação.
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"O Movimento Biblioteca Urgente é resultado do amadurecimento que a gente tem de abrir diálogos com instituições, com entidades, com autoridades, com o poder público… A gente age muito com os princípios e as práticas da autogestão e da autonomia, só que a pandemia veio para alargar dificuldades. As bibliotecas são expressões das necessidades das comunidades — e como a gente presta um serviço à Cidade, considera que isso tem que ser um compromisso da sociedade de forma geral. A sociedade precisa se responsabilizar e ajudar a manter esses espaços funcionando. A importância desse apoio é visibilizar e valorizar os espaços e atividades das bibliotecas, do papel que a gente está cumprindo e que deveria ser da Prefeitura e do Governo do Estado", defende Baticum.
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Nesta rede de atuação — "que se dá contribuindo com outras Bibliotecas de Iniciativa Popular com atividades artísticas, doação de livros e de materiais por afeto e proximidade", como ressalta Baticum —, a Biblioteca Adianto irriga a Barra do Ceará com cultura. Criada por Valdecila Freitas na própria residência entre 2018 e 2019, a Adianto hoje é coordenada por seu filho, Wesley Farpa. "Há uma grande rachadura nos investimentos em cultura nas periferias. Sempre foram muito centrados nos equipamentos oficiais, mas as Bibliotecas de Iniciativa Popular têm que ser vistas. Nós temos muita abertura com a 'Mandata Coletiva Nossa Cara', mas precisamos do apoio de demais vereadores", pontua Wesley.
"A real é que estamos sempre à beira do fim. Cada dia que passa é um dia que vencemos no meio dessa crise. É por isso que nosso movimento é urgente, porque as bibliotecas são mantidas dos nossos bolsos — somos nós sonhando em transformar o nosso lugar. Ninguém tem grana para isso, mas teimamos", continua Wesley. "Nós chamamos de Bibliotecas de Iniciativa Popular porque comunitárias elas já são. As bibliotecas vivem pelas pessoas que estão envolvidas, então é preciso lembrar que não só a Aldeota e o Centro têm direito a uma estrutura cultural". No Instagram, o perfil @bibliotecanazaria apresenta atividades das bibliotecas em seus múltiplos territórios.
A Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza (Secultfor), em nota, destaca que representantes do Movimento Biblioteca Urgente foram recebidos nos últimos dias 7 e 22 de julho na sede do órgão. "A Secultfor ressalta que está aberta ao diálogo com todos os seguimentos artísticos e está atenta às reivindicações. A pasta esclarece que aguarda a votação do Plano Plurianual (PPA), na Câmara Municipal de Fortaleza, para que seja possível apoiar as atividades das bibliotecas comunitárias presentes na capital cearense".
A poética da mediação de leituras em Fortaleza
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Alguém me voou um livro
Quando abri, palavras saltaram
de páginas trampolim
no meu peito deserto
cai num silêncio.
Quando voltei não era eu
era outro, mas ainda era meu.
Agora também voo livros
Porque aprendi da importância de livros voados.
(Rita Cássia, CasAvoa - Biblioteca Comunitária Livro Livre Curió)
Por Rômulo Silva
A poética da mediação de leituras nas bibliotecas-livres na cidade de Fortaleza (CE) é um convite a [re]imaginarmos um mundo que está por ser inventado. Não no sentido de um “futuro”, mas do gesto que funda uma série de “agoras”.
Um dos objetivos principais das bibliotecas-livres é criar uma relação com os livros e leitores (inclusive, frequentadores do espaço) não mediada pela vigilância dos cadastros, da catalogação, dos prazos de renovação e devolução, assim como da quantidade que podem circular por vez — mais que um espaço físico, trata-se da mediação de leitura como prática da liberdade, como nos fala bell hooks.
Atualmente, na capital cearense, existe um movimento organizado intitulado Biblioteca-Urgente (conheça e apóie acessando via Instagram @bibliotecanazaria), uma das práticas do que chamo de Rede de Afetos — práticas de resistência e de re-existência que objetivam recriar coletivamente outras formas de vida.
O movimento Biblioteca-Urgente estende-se na ação poética e política de moradores e moradoras de comunidades localizadas em periferias e favelas, assim como dos e das poetas-mediadores-de-leitura que reinventam projetos de incentivo e fomento à leitura por meio da organização e construção coletiva de bibliotecas comunitárias e livres, recebimento de doações de livros e atividades de leituras prioritariamente voltadas para crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos moradores de favelas e periferias da capital cearense.
Iniciativas autônomas, construídas e mantidas pelas comunidades locais, juntamente com os saraus de periferias, as bibliotecas-livres têm sido nos diferentes bairros da Cidade um dos principais espaços de promoção de arte, cultura, assim como fomento à leitura, ao lazer, à produção intelectual e de formação nos últimos anos. Ainda que de forma remota e mais recentemente semipresencial, algumas bibliotecas foram obrigadas a fechar as portas e outras a se reinventar conforme cada realidade, respeitando os decretos locais e protocolos recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em combate à pandemia da Covid-19. Atualmente, as bibliotecas-livres e de iniciativa popular têm se organizado em rede para integrar o Orçamento do Plano Plurianual do Município objetivando aprovar pelo menos para os próximos quatro anos um recurso base que garanta a manutenção mínima desses espaços por esse tempo.
À semelhança dos saraus de periferias e da poesia-no-cambão, as bibliotecas comunitárias e livres são organismos vivos que existem mais por meio da partilha e da relação de cuidado a favor da vida. Resultado de lutas e organização popular, atualmente existem as seguintes Bibliotecas Comunitárias, Livres e de Iniciativa Popular: Adianto - Barra do Ceará; Casa Futuro - Coaçu; Cia Bate Palmas - Conjunto Palmeiras; Coisa de Preto - José Walter; Filó - Santa Filomena; Livro Livre Curió - Curió; Okupação - Antônio Bezerra; Papoco de Idéias - Pici; Periferia que Lê - Bom Jardim; Quintal Cultural - Bom Jardim; Viva Barroso - Barroso e Viva a Palavra - Serrinha.
Por serem lugares de partilha não somente de livros, mas sim da palavra-praticada, escrita, lida ou relatada, mediada principalmente pela experiência particular de determinados territórios que têm o em-comum como prática e invenção cotidiana, esses espaços são construídos com tijolos e argamassa em comunidade, práticas fruto das formas de existências que diferem das lógicas do verticalismo autoritário e da descontinuidade das políticas públicas municipais e estaduais do livro, leitura e bibliotecas pensadas até então.
A poética da mediação de leituras é, portanto, um acontecimento que possibilita ler mais que um livro ou uma imagem, ela nos convida a escrever com nossas próprias mãos, pés e rosto a nossa história re-imaginando possíveis. A semelhança, e como uma espécie de extensão dos saraus de periferias, as bibliotecas-livres possuem certa espontaneidade, criam ordenações múltiplas e relações possíveis entre os participantes e a própria comunidade. Reivindicam uma existência respirável contrária a toda lógica que nos asfixia há séculos.
Rômulo Silva é poeta, pesquisador, integrante do Laboratório de Estudos da Conflitualidade e Violência (COVIO/UECE), onde também coordena a linha de pesquisa "Estudos afro-atlânticos" e também pesquisador-colaborador no Laboratório de Arte Contemporânea (LAC/UFC). Tem interesses nas áreas da Sociologia Imaginativa; Mediação de Leituras; Bibliotecas-Livres e Encontros-saraus, além dos Estudos [Anti]coloniais. Mestre e doutorando pelo Programa de
Pós-graduação em Sociologia (PPGS/UECE). Instagram: @franromulosilva. E-mail: franromulosilva@gmail.com.