Prestes a completar 80 anos, celebrados neste domingo, 1º, o cantor Ney Matogrosso continua revelando novas facetas em oposição ao ordinário. Para não lamentar outra comemoração em completo isolamento, o leonino decidiu festejar com a produção de um disco composto por temas que sempre quis cantar. Canções de artistas consagrados da música popular brasileira, como Caetano Veloso e Raul Seixas, estão no repertório do EP "Nu Com a Minha Música", disponível a partir da data de aniversário do intérprete.
Nascido na cidade de Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, Ney de Souza Pereira se apropriou do nome artístico quando começou a profissionalização no teatro. Em 1971, passou a integrar o grupo Secos & Molhados, com o qual gravou dois discos repletos de sucessos nacionais, como "Sangue Latino" e "Flores Astrais". Estreou como solista em "Água do Céu - Pássaro" (1975) e confirma a imprevisibilidade característica do seu trabalho: surge vestido com pelos de animais, chifres e dentes de bois. Desde então, o artista consolida carreira com 27 álbuns de estúdio, milhões de discos vendidos e uma homenagem honorária no Grammy Latino.
No palco, o público se depara com tantas outras versões do também dançarino e diretor. Polêmico, excêntrico, livre. Ney carrega consigo as artimanhas de um performer e tem presença cativante nas apresentações. "Ele tem um percurso muito inusitado, não tem nenhuma referência. Foi traçando o caminho dele por meio de uma influência que sofreu no teatro", explica Flávio Queiroz, professor universitário com doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) que pesquisa a carreira do cantor há 21 anos.
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No tempo de estudo, o sociólogo se debruçou sobre a participação de Ney no Secos & Molhados e seu trabalho solo. "Ele teve uma influência muito voltada para a transgressão do comportamento, muito importante nos anos 1970 e 80. Prevaleceu uma carreira comportamental. Ele representa uma ruptura de gênero que não pautava dentro das expectativas da esquerda, da direita, foi construindo a carreira solo dele sem apoio", analisa.
Homem com H, Ney atravessou o conservadorismo em meio à ditadura com performances que transitavam entre o gênero masculino e feminino, com roupas extravagantes e temas como a liberdade sexual. "A censura não conseguiu apreender o Ney Matogrosso, ele sempre usou um personagem. A sexualidade exacerbada no palco, essa questão do gênero, era uma pancada muito grande nos militares, ele era hostilizado no meio. A censura que ele sofria era diferente da censura política, era uma censura moral", destaca Flávio.
O movimento revolucionário de Ney pavimentou a música e cultura brasileira, e inspirou o trabalho de tantos outros artistas que viriam a seguir para que pudessem se expressar livremente. "O Ney é único, ímpar, conseguiu tecer uma relação muito potente e quase transcendental entre a música, a performance e o teatro. Ele teatraliza a música, ele musicaliza o teatro", opina o ator Andree Ximenes.
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As inquietações pessoais e artísticas de Andree culminaram no curta-metragem "Felino" (2021). "Veio do questionamento de como o masculino e o feminino existem em mim, eles podem existir em fluxo?", indaga. A imagem do cantor surgiu como uma resposta e personificação da animalidade. "Para mim ele é um animal no palco. Ele tem muita força, o olhar dele é muito marcante, e isso para mim é um gato, leão, tigre. Tudo está entrelaçado nessa obra que eu fiz. Acabou virando meio que uma homenagem para o Ney Matogrosso", conta.
Essa influência também perpassou pela trajetória do cantor Daniel Peixoto, que tinha um "fascínio sobrenatural" pela imagem de Ney. Quando começou a trabalhar no meio artístico, Daniel buscou aplicar os ensinamentos na arte. "Não tínhamos referências nacionais de ídolos pops, principalmente de um artista queer. Todos os artistas que inspiravam minha geração de performers eram gringos", relembra. O trabalho do intérprete continua acompanhando Daniel nas regravações de "O Vira" (1973), sucesso dos Secos & Molhados, e da canção "Postal de Amor" (1975). É uma forma, explica Daniel, de se manter conectado com um artista "brilhante" que segue pulsante.
Para a professora de música Lu Basile, da Universidade Estadual do Ceará (UECE), o diferencial de Ney Matogrosso é a "força da performatividade", além da "voz maravilhosa”. Ela menciona a capacidade do cantor de trazer o corpo em cena como um complemento do espetáculo. "É como se construísse uma "persona". Essa ideia de que a música estava para além do canto, se dando num mix de elementos das roupas, da atitude, dos arranjos, da arte da capa dos discos, enfim, da intertextualidade com as outras linguagens", especifica. Os elementos já apareciam com a Tropicália, mas Lu afirma que, com Ney, o "corpo é destacado em toda sua potência".
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A versatilidade do intérprete também é ponto de destaque para o bancário aposentado Marcondes Chaves Almeida, fã do artista desde 1976. "Ele transmite a música, vive a música e cativa você", comenta. Para quem presencia um show de Ney Matogrosso, o conselho é não tirar o olho do palco. "Você tem que ficar vidrado no palco para ver as coisas bonitas que ele tem para oferecer, o cenário, o palco, a coreografia", exemplifica.
Desde o primeiro show que participou, em 1977, Marcondes não perdeu uma apresentação do cantor em Fortaleza. A coleção de itens relacionados ao artista só aumentou: atualmente, ele soma 71 trabalhos, entre CD's, DVD's e livros. Ele também relata que agregou várias pessoas aos projetos de Ney, inclusive a mãe, que conheceu pessoalmente a personalidade aos 90 anos em um show no Dia das Mães. "O público dele tem de 18 a 90 anos, é uma diversidade muito grande", acrescenta.
Entre tantos encontros com Ney, Marcondes pôde conhecer relances da personalidade. “É totalmente diferente, sereno, tranquilo. E muito simpático. No palco ele é um leão, já que é leonino. Pessoalmente ele é muito calmo, quando a gente chega no camarim ele recebe todo mundo da mesma maneira", conta. A maturidade, aponta, é visível nos últimos trabalhos. "Ele acompanha o tempo, vai evoluindo, varia para não ser o mesmo Ney de sempre. Ele está fazendo 80 anos com toda a vitalidade e cantando cada vez melhor", opina o fã.
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