Em 2019, Maria Bethânia apresentou o show “Claros breus” para uma pequena plateia do Manouche, casa de shows carioca que evoca o clima das boates e clubes de jazz. O espaço tinha tudo a ver com a proposta do show, que era recriar a ambiência de quem vive da noite. Embora nunca tenha sido uma cantora da noite, a baiana trouxe pra si esse universo e buscou canções que a levassem por um passeio da luz até quando as lâmpadas apagam. Entre sucessos acumulados em mais de 50 anos de carreira e algumas inéditas, ela apresentou para aquele público seletíssimo canções de Chico César, Caetano Veloso, Adriana Calcanhotto e “Evidências”, hit absoluto de qualquer noitada.
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A composição de José Augusto e Paulo Sérgio Valle fez história na versão incontida de Chitãozinho e Xororó. No registro de Bethânia, a balada ganhou outros tons, mais densos. “De fato, minha voz não é comum”, comentou Bethânia quando eu comentei que havia confundido sua voz com a de Ana, que havia atendido a ligação. Realmente, o tempo deu à intérprete o domínio quase absoluto da interpretação, algo que a faz capaz de dar personalidade única a um repertório que vai do samba exaltação mais colorido ao samba-canção mais esfumaçado. É isso que fica evidente em “Noturno”, álbum que ela lançou na última sexta-feira, 30, pela gravadora Biscoito Fino.
O roteiro do álbum nasceu durante a temporada de “Claros breus”, que acabou interrompida pela pandemia. Gravado no segundo semestre de 2020, “Noturno” nasceu em meio a protocolos de segurança. “Foi meio no sufoco. Apesar de todo o meu receio e de todos os cuidados, que obedecemos, todos nós temos juízo. Foi dificílimo, mas eu tinha tanta necessidade de me expressar, falar das minhas ideias, meus pensamentos, que eu fiz. Serviu até pra vencer essa barreira contra esse vírus endemoniado”, comenta Bethânia que buscou formatos reduzidos, com poucos músicos. “Essa pandemia tem levado a situações muito duras, muito difíceis. Estamos todos tristes. Mas, mais triste tem uma humanidade perdendo pais, filhos, avós. Eu perdi muitos amigos”. E foi dessa vontade de falar que nasceu “Noturno”.
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Aos 75 anos, completados no último dia 18 de junho, mais de 50 discos gravados e uma carreira pontuada pela presença física e artística no tecido social brasileiro, Maria Bethânia sabe da necessidade de cantar o País de diferentes formas. "Entro em estúdio quando tenho uma ideia, um pensamento. É uma necessidade, uma urgência, um pedido que fica guardado lá no fundo. E não sou uma cantora só. Eu preciso da dramaturgia, preciso do palco", acrescenta a artista que durante o período de pandemia só teve esse encontro com público em uma única live. "Eu gostei, mas a minha foi muito boa, muito profissional. Todo mundo muito elegante, muito educado, muito bonito. Todo mundo meio vestido escafandro, meio de astronauta. A cantora não pode, mas os músicos de máscara", brinca, enquanto lembra que não gosta de fazer TV. "Televisão não é minha praia não. Mas a live foi outra praia. Fiz num teatro, que é o meu palco, com meus músicos. As câmeras eu nem as via. Todos compreenderam a artista".
E muito do repertório de "Noturno" foi apresentado nessa live. O choque entre o escuro de um momento desafiador e a claridão de uma luta por resistir está presente em tudo. A começar pela capa, onde o título se deita sobre um imenso branco. No encarte, nada de melancolia, mas bordados de coração. O repertório segue essa linha de luzes e sombras, e abre com "Bar da noite", clássico na voz de Nora Ney que Bethânia já havia sugerido para que Alcione gravasse no disco "Nos bares da vida" (2000). "Eu nem lembrava dessa gravação. Mas se ela fez, fez muito bem porque ela sabe cantar muito bem. Eu sugeri essa música pra ela, mas a Nora que foi a grande intérprete", conta Bethânia que é acompanhada na faixa pelo piano delicadíssimo de Zé Manoel.
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E "Noturno" segue entre compositores já presentes na discografia de Maria Bethânia e algumas novidades. Começando por estes, tem a sertanejíssima "O sopro do fole", de Zeca Veloso. "Uma obra prima, sou louca por essa música. Não quero nem saber se é meu sobrinho. É uma bandeira de muito talento, como o Tim Bernardes. Muito potentes", abençoa ela, já adiantando o autor de "Prudência", bolero que nasce com cara de clássico e poderia estar em um disco de Dolores Duran ou Angela Maria. Também entre os novos, tem Xande de Pilares, que também divide os vocais do samba "Cria da comunidade" num dueto íntimo e carioquíssimo.
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Quanto aos compositores já reconhecidos na voz de Bethânia, tem Roque Ferreira, autor de "Lapa Santa", um dos primeiros singles do disco, e "Música música", que Bethânia dedica "aos sobreviventes". E tem Adriana Calcanhotto, responsável por dois momentos de profunda tristeza do disco. Um é "A flor encarnada", um arrasador canto de amor acabado, e "Dois de Junho", sobre a trágica morte de Miguel Otávio Santana da Silva, filho de uma empregada doméstica que caiu de um prédio em Recife enquanto deveria estar sob os cuidados da patroa de sua mãe.
Maria Bethânia não sabe ainda quando vai poder reencontrar o público ao vivo, no calor do palco. Ela reafirma a necessidade que tem desse encontro, dessa troca, olhar e a resposta imediata de cada um. "Não sei, não tenho ideia. O Brasil anda muito devagar", lamenta enquanto também comemora o povo que exige uma campanha de vacinação mais acelerada. "Aqui o povo vai pra rua luta, briga e exige: 'eu quero va-ci-na'", pontua sílaba a sílaba dando atenção a essa parcela da sociedade que sabe que só com vacinação é possível pensar em tempos melhores. E talvez tenha sido pensando na autoestima dessa parcela da população que ela inverteu a lógica de "Claros breus", que fazia um caminho da luz para o escuro. Em "Noturno", o percurso é contrário e encerra com "Luminosidade", de Chico César", e com o poema "Uma pequena luz", do poeta português. "Você é um ótimo entrevistador", disse Bethânia antes de desligar, e eu só coloco aqui pra elevar minha autoestima também.
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Dedicatórias e comentários de Bethânia
1. Bar da noite (Bidu Reis/ Haroldo Barbosa)
"Para mim e meus recôncavos". É uma música que eu sempre canto, está registrada na minha memória. Eu queria abrir com o noturno, o fechado, a proibição de tudo. Pra chegar até a luz. O "Bar da noite", no show, ele encerrava os claros breus.
2. O sopro do fole (Zeca Veloso)
"Para o público minha sorte minha alegria". Uma obra prima, sou louca por essa música. Não quero nem saber se é meu sobrinho
3. Lapa santa (Paulo Dafilin/ Roque Ferreira)
"Para todo povo barranqueiro". Meu querido Roque Ferreira, e essa prece, essa oração, essa reverência à Lapa Santa do Bom Jesus.
4. De onde eu vim (Paulo Dafilin)
"Para Maria". Minha Bahia sagrada.
5. A flor encarnada (Adriana Calcanhotto)
"Para os amantes traídos". Uma compositora presente, muito capaz, muito potente. Tanto nas canções românticas como nas crônicas.
6. Vidalita (Maria Teresa Martin Cadierno)
"Para os resignados". Uma canção que eu conheço há mais de 30 anos. Tô fazendo qualquer coisa, passeando pelo jardim e canto. Eu conheci com a autora, que é catalã e canta muito bem. Muito bem. E eu fiquei encantada. Eu sempre dizia que um dia iria cantar e quando estava fazendo esse disco eu disse "é agora".
7. Prudência (Tim Bernardes)
"Para os corações inquietos". Do Tim Bernardes. Essa turma nova toda é muito boa. Ele é criativíssimo.
8. Música música (Roque Ferreira)
"Para os sobreviventes". O amor acende as luzes e manda a orquestra tocar. (O disco) Começa a iluminar aqui.
9. Cria da comunidade (Xande de Pilares/ Serginho Meriti)
"Para o Rio e sua gente linda". Eu sou fã do Xande. Acho ele muito potente como cantor e compositor. Ele tem coragem. É uma belezura, uma história tão bem narrada desse valor que o povo brasileiro tem de lutar pelo que quer.
10. Dois de junho (Adriana Calcanhotto)
"Para os indiferentes". Tem uma dramaticidade! Ela (Adriana) pediu pra eu cantar e eu disse: "É logico". Contrapõe a coisa forte da periferia carioca.
11. Luminosidade (Chico César)
"Para pedir misericórdia". Esse deslumbramento de Chico César, um compositor que eu tenho um orgulho. Ele é muito lindo, muito sensível.
12. Poema: Uma pequena luz (Jorge Sena)
"Obrigado Eucanaã Ferraz pela ajuda na escolha do poema". Essa claridade que eu sinto e que quero que nunca se apague.
Maria Bethânia Noturno
Produção musical de Jorge Helder
Direção musical e arranjos de Letieres Leite
Biscoito Fino
Disponível nas plataformas de streaming