Logo O POVO+
Em novo livro, Daniel Galera reúne histórias sobre a incapacidade de fugir
Vida & Arte

Em novo livro, Daniel Galera reúne histórias sobre a incapacidade de fugir

Escritor Daniel Galera lança o livro "O deus das avencas" que reverbera a situação atual de ideia de ruína, de desfecho apocalíptico
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Daniel Galera apresenta obra marcada pelo contexto nacional (Foto: Marco Antonio Filho/Divulgação)
Foto: Marco Antonio Filho/Divulgação Daniel Galera apresenta obra marcada pelo contexto nacional

Autor de “Barba ensopada de sangue”, ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura, o escritor Daniel Galera já havia experimentado certo desgaste do formato realista em trabalhos anteriores. “O deus das avencas” (Cia das Letras), reunião de três novelas que chega agora às livrarias, é, desse modo, também uma fuga dessa de forma de representação, explorando um gênero pelo qual ainda não tinha enveredado.

“Tóquio”, “Bugônia” e o trabalho que dá título ao livro se conectam contra um pano de fundo no qual toda tentativa de escapada é, de alguma maneira, frustrada. Das três narrativas, “O deus das avencas” é a que mais se aproxima do contexto brasileiro no tempo presente.

Nela, um casal isola-se enquanto o restante do país testemunha a eleição de Jair Bolsonaro. Um enredo em que o esgotamento de recursos, a falência política e a proximidade do fim se intercambiam.

Leia Também | Centro Cultural Bom Jardim recebe propostas artísticas até domingo, 8

O POVO - Quero começar perguntando como concebeu as três novelas e se as imaginou cruzando-se em algum momento. Ou, pelo contrário, sempre foram consideradas como narrativas autônomas, mas que compartilham um mesmo fundo?

Daniel Galera - Foram pensadas como narrativas autônomas, incialmente como contos de um projeto com mais histórias. Aos poucos essas três cresceram e passei a achar que formavam um conjunto interessante, compartilhando temas mas transitando entre diferentes épocas e estilos. Embora as tramas não se cruzem, são histórias imaginadas a partir de ansiedades e observações de um mesmo presente. Passei a vê-las como três histórias sobre nossa incapacidade de fugir. Das forças políticas, do corpo e do planeta, respectivamente.

O POVO - Reunidas, as histórias materializam certo olhar sobre impasses que vão do presente mais imediato e suas agonias políticas a uma ideia de futuro que é também extrapolação deste mesmo presente, como em 'Bugônia'. Como se deu esse movimento?

Daniel Galera - Não planejei esse movimento de recuar ao passado recente na primeira história e depois dar dois saltos grandes pro futuro. Só com os três textos já rascunhados que identifiquei essa dinâmica. A fagulha das novelas foram coisas mais específicas: a memória dos dias que antecederam a eleição do Bolsonaro, as fantasias pós-humanas de cópias mentais, o comportamento das abelhas. Os conceitos iniciais foram se alargando e dialogando conforme desenvolvi as histórias. Mas não parti de um projeto fixo. Tentei deixar a imaginação muito livre desde o começo, diferente de outros livros meus, que se basearam em planejamento prévio mais rigoroso.

Leia Também | Lady Gaga e Tony Bennett lançam álbum em outubro; escute a primeira música

O POVO - "O deus das avencas" vem depois de um hiato após seu último romance. Como prosador, quais as questões que pesaram nesses anos antes de propriamente mergulhar noutro processo de escrita? Tentou de alguma maneira explorar novos caminhos, como fez com a ficção científica?

Daniel Galera - A escrita do meu romance anterior, "Meia-noite e vinte", foi desgastante e me deixou um pouco cansado. Em seguida me tornei pai, o país começou a mergulhar cada vez mais fundo em suas tendências fascistas e autoritárias, enfim, foi um período turbulento no qual demorei a encontrar o tempo e as ideias para voltar a escrever. Mas, sim, a decisão de experimentar com gêneros narrativos novos fez parte da solução.

O POVO - A reflexão sobre a própria forma do realismo esteve sob revisão durante a escrita dessas histórias ou antes dela?

Daniel Galera - Essa reflexão começou antes, já na escrita de "Meia-noite e vinte". Naquele momento já experimentei o desgaste das estratégias do realismo que me serviram bem na escrita dos meus outros livros. É como se a velocidade e intensidade dos acontecimentos, mas sobretudo a sobrecarga de informação e imagens na mídia, estivessem sempre correndo à frente do que a imaginação realista podia representar. Nesses anos pensei muito nisso, li com atenção mais ficção científica e fantasia, comecei a anotar ideias que não estivessem tão amarradas ao contemporâneo e à pretensão factual do estilo realista, que na verdade é somente uma construção simbólica entre outras.

Leia Também | Pesquisador musical José Ramos Tinhorão morre aos 93 anos

O POVO - Pela própria natureza da obra, imagino que tenha exigido um trabalho de pesquisa maior, sobretudo científico. Quais foram as suas principais referências nesse estágio de investigação?

Daniel Galera - Não creio que esse livro exigiu mais pesquisa que os outros. Muitos assuntos que aparecem nas histórias vieram de livros que eu vinha lendo por mero interesse, sem pensar em escrever. Por exemplo, os ensaios sobre espécies companheiras da Donna Haraway, um livro sobre os riscos da produção de alimentos no futuro, chamado "Food or War", de Julian Cribb, além de incontáveis artigos com que topo todos os dias na internet, os filmes e livros com temas pós-apocalípticos ou especulativos, além de, é claro, o noticiário infernal sobre a realidade brasileira. Fui reler os jornais da semana que antecedeu a eleição de 2018 pra escrever a novela "O deus das avencas", li as "Geórgicas" do Virgílio pra emprestar algumas coisas pra "Bugônia", pesquisei mais sobre teoria da mente e inteligência artificial pra "Tóquio". Mas a pesquisa se confundiu muito com o que seria minha fruição espontânea de textos e obras.

O POVO - O livro chega num momento em que outros autores brasileiros também elaboram, de alguma maneira, essa ideia de ruína, de desfecho apocalíptico, como em "A extinção das abelhas", da Natalia Borges Polesso, "O riso dos ratos", do Terron, e "O último gozo do mundo", do Bernardo Carvalho. Como percebe o tipo de resposta que a literatura tem dado a esse esgotamento planetário?

Daniel Galera - A literatura tem a força de expandir nossa sensibilidade e nossa consciência a respeito da vida. A melhor ficção sobre o nosso tempo dificilmente será capaz de trazer teorias e informações novas, mas ela permite pontos de vista e emoções estéticas diferentes daqueles que podemos encontrar na mídia ou nos debates cotidianos. Isso porque a ficção é o terreno da liberdade expressiva total, o lugar onde até o que é inadequado, perturbador ou impensável precisa ser elaborado. Vejo os escritores sondando essas possibilidades, tentando melhorar nossa consciência desses tempos aflitivos por meio da imaginação. Se o mundo tem saída, quer dizer, se não vamos destruí-lo a ponto de impossibilitar a vida humana digna, essa saída com certeza necessita do alargamento de imaginação e sensibilidade que a arte pode proporcionar. Me agradam as histórias atuais que tentam não só nos despertar pros horrores do momento, mas também quebrar o fatalismo do crescimento econômico a qualquer custo, incitar solidariedades, minar o antropocentrismo que nos tornou cegos para tantas possibilidades de coexistência planetária.

O Deus das avencas

Editora Companhia das Letras
248 páginas
Quanto: R$ 41,18 (e-book R$ 28,83)

O que você achou desse conteúdo?