É impossível recordar quantas vezes passei pelo Edifício São Pedro em meus 20 e tantos anos de vida. Ele mudou de significado enquanto crescia, mas lembro do que imaginava quando ainda tinha uma infância com poucas referências históricas de Fortaleza. No banco detrás do carro, olhava para aquele prédio aparentemente abandonado e, ao mesmo tempo, imponente. Quem morava ali? Para mim, provavelmente eram os bichos do mar ou devia ser o portal para o mundo da magia de Hogwarts. Afinal, a saga Harry Potter tinha dito que essas entradas eram invisíveis aos olhos dos humanos comuns. Talvez eu fosse a única que conseguisse ver. Somente uma década depois descobri que, na verdade, ali era o antigo Iracema Plaza Hotel, primeira edificação da orla e que há muito tempo passa por um embate sobre a possível restauração ou destruição.
Na última quinta-feira, 19, a Prefeitura de Fortaleza decidiu indeferir o tombamento provisório do imóvel. De acordo com José Sarto (PDT), sua recuperação se tornou economicamente inviável, além de existir um risco de desabamento. Com essa situação, o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) orientou que a população se manifestasse em defesa do patrimônio histórico do Estado. Em nota, o órgão pediu a mobilização para sensibilizar os agentes públicos sobre a importância de preservar as construções históricas.
Entretanto, nesta segunda-feira, 23, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) também iniciou uma avaliação acerca da possibilidade de tombamento federal. O órgão deverá dar um parecer em até 90 dias. Mesmo se houver aprovação, a construção ainda pode ser demolida e, por causa disso, será necessário entrar com o processo de tombamento provisório até que sejam finalizadas as análises para o procedimento oficial.
Romeu Duarte, professor de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), acompanhou o processo desde o início. Ainda na gestão de Luizianne Lins (PT), ele era o consultor da família proprietária e sócia majoritária, a Philomeno Imóveis e Participações S.A., que apresentou possíveis maneiras de solucionar a restauração. Há meia década, o custo para recuperar sem nenhuma alteração era de R$ 6.500 diariamente, o que se tornaria inviável, segundo o arquiteto. "A prefeitura não saía do muro e não sabia o que fazer com o edifício, se aprovava ou desaprovava. O conselho, porém, não dava margem para apresentar outra coisa que não fosse essa", explica.
Para ele, a reconstrução deveria ser feita com mudanças na estrutura original - sem prejudicar o valor arquitetônico do antigo prédio. Romeu pontua, entretanto, que isso não foi bem aceito. "Nós, arquitetos, temos uma visão restrita com relação ao patrimônio. Há colegas meus que, se você faz uma mudança assim, é como se fosse um sacrilégio, um crime (...). Com essa visão restrita e rigorosa, a gente leva o patrimônio à morte por excesso de zelo. É um amor tão grande que você sufoca", comenta.
A situação pode causar uma perda irreparável para a história da cidade: "A prefeitura precisa definir quem faz o quê. A gente tem que parar de destruir. O patrimônio fica sendo a 'cerejinha da torta', mas precisa estar na frente. Temos ícones da arquitetura moderna, mas não cuidamos do nosso acervo", diz. Segundo o professor, "não vejo carinho e sensibilidade do povo cearense e de suas autoridades acerca do patrimônio. Existe uma visão exageradamente voltada ao comércio. Tudo aquilo que é antigo é visto como algo defasado, quando, na verdade, a gente devia ver o patrimônio como algo cotidiano, do presente".
Esse é o mesmo ponto de vista compartilhado pelo fotógrafo e documentarista Reinaldo Jorge que, no ano passado, lançou o documentário "Iracema Plaza Hotel". O processo de pesquisa para sua obra surgiu ao perceber que Fortaleza não preservava sua própria cultura. "O São Pedro é a maior representação de como lidamos com a memória", avalia.
Mas a relação dele com o edifício começou anos antes, igual a de milhares de fortalezenses. "Quando criança, passeando com meu pai na orla, ele despertava minha imaginação. Eu ficava fantasiando o que tinha lá dentro e quem morava ali", recorda. Já adulto, passou a ter curiosidade sobre a história do prédio e também tinha o desejo de entrar no local.
Para o profissional, o processo que o prédio enfrenta reflete na forma como os cearenses - em geral - percebem sua própria história. "Isso traz uma questão de personalidade. Se não tivermos um passado, não sabemos definir quem somos. Quando negligenciamos a história, deixamos de lado e não ligamos para esse aspecto de uma cidade, ficamos sem personalidade, sem identidade", pondera.
Leila Nobre, historiadora, pesquisadora memorialista e dona da página "Fortaleza Nobre", acredita que a situação é um retrocesso. "Não há essa preocupação em preservar, tudo aqui (em Fortaleza) é muito volátil. É uma briga de gigantes, e a cultura é quem paga mais. Além da especulação imobiliária ser enorme, ainda temos que lutar para ter voz, em favor da história, da preservação e da valorização do que é nosso", comenta.
Para ela, a preservação do patrimônio significa manter a própria identidade. "Valorizar nosso patrimônio é contar nossa história, é saber de onde viemos, é ter um tesouro, um legado, é o que recebemos do passado e o que transmitimos às futuras gerações. É nossa referência e fonte de inspiração", diz. Mas, para isso, é necessário criar uma conscientização desde a infância e a adolescência: "uma memória não se constrói de um dia para o outro, ela é feita de experiências vividas ou de ouvir falar. Pois, então, vamos falar, vamos ensinar, vamos lutar contra esses ‘esquecimentos’ convenientes".
Neste momento, o antigo Iracema Plaza Hotel - construído há exatos 70 anos - permanece com um futuro incerto. O lugar, antes apelidado de "Copacabana Palace" do Ceará, funcionava como hospedagem, além de condomínio residencial e comercial. Abrigou centenas de nomes populares e se tornou o primeiro prédio com mais de dois andares da orla. Mesmo que não haja uma previsão absoluta do que está por vir, o edifício resiste ao tempo por meio de seu valor simbólico e sua influência: talvez, se ele não tivesse existido, a Praia de Iracema não fosse o ponto turístico repleto de prédios, comércios, turistas e moradores como é hoje.
Simbolismo da ruína
“Eu entendo e admiro a história do Edifício São Pedro. Acho que ele é um marco simbólico na nossa cidade tanto por ser o primeiro prédio da orla, quanto por ser um prédio altamente diferente do que a gente já tinha visto. Mas hoje eu vejo que a ruína do Edifício São Pedro tem um valor simbólico também”, explicita Virna Fernandes, publicitária e mestre em estudos urbanos.
Ela, que produziu a dissertação “O Edifício São Pedro e a memória na cidade de Fortaleza”, defende: “a ruína fala”. Quando entrou pela primeira vez na edificação, entendeu os motivos que tornaram sua construção financeiramente inviável. Por isso mesmo, acredita: “a manutenção da ruína do edifício São Pedro conta muito da história de Fortaleza”.
Segundo a pesquisadora, o atual estado representa a modernidade que a capital cearense tanto quer alcançar, mas não consegue. “Ele entrega o fracasso de sermos modernos, de sermos a cidade high tech que todo mundo quer que Fortaleza seja. A gente abandona muito as raízes, referências que são completamente nossas. Abandonamos isso em detrimento da modernidade”, afirma.
Para Virna, esse processo de destruição da memória faz com que os moradores da Cidade não se sintam pertencentes a ela. “Se as pessoas se sentirem pertencentes, vão lutar por essa Cidade. Vão reivindicar os direitos dela. Não é interessante para os governantes que a gente se sinta no direito de circular por locais públicos”.
Patrimônios como formação da identidade cultural
Em entrevista para O POVO, Jacqueline Holanda, professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Fortaleza (Unifor), reflete sobre o valor simbólico do Edifício São Pedro e a importância da conservação do patrimônio histórico para a formação de uma identidade cultural
O POVO: Qual o valor simbólico que o Edifício São Pedro tem para Fortaleza?
Jacqueline Holanda: O Edifício São Pedro é um marco significativo de pioneirismo em Fortaleza. Inaugurada em 1951, era a primeira obra daquele porte na Praia de Iracema, tornando-se um ícone no processo de verticalização da cidade, com destaque por inaugurar também o uso de hotelaria, na orla marítima. Até aquela época, os hotéis da cidade se concentravam no Centro. A década de 1950 em Fortaleza se caracteriza pelo investimento em edificações de gabarito mais elevado, associado à influência Art Déco. A presença de elementos dessa linguagem formal, como o escalonamento nos níveis superiores, a geometrização nos detalhes, a limpeza de ornatos, a delicada marcação entre pavimentos, compõe um conjunto volumétrico cujo o uso da cor branca e, possivelmente, a localização, o relacionaram à arquitetura naval, na visão popular. Cedo a edificação se destacou, tornando-se conhecida e comentada na Cidade, consolidando uma relação de pertencimento.
O POVO: O que esse recuo no tombamento representa para nossa cidade?
Jacqueline Holanda: Nossa cidade já passou por muitas perdas, várias situações também recentes, que poderiam ter sido evitadas. O caso do Edifício São Pedro é extremamente complexo, pois há dados que apontam para um grande comprometimento atual da estrutura. A complexidade dessas questões já vem sendo abordada há bastante tempo, por exemplo, em eventos internacionais como a conferência da O.E.A. em 1967, que deu origem às Normas de Quito. O evento se originou a partir da percepção do grave risco de perdas patrimoniais nos países latino americanos, devido também à instabilidade econômica tantas vezes observada nessas nações. A conservação dos bens patrimoniais obviamente demanda recursos, muitas vezes, altos. Dispor de tais recursos em locais onde muitas vezes se enfrenta carências básicas é um fator de agravamento e as perdas continuam.
O POVO: Fortaleza costuma ter esse movimento de demolição de prédios antigos para dar lugar a construções modernas… Na sua opinião, por que isso acontece?
Jacqueline Holanda: Infelizmente a complexidade das questões econômicas sempre se faz presente. O mercado busca novos investimentos, enquanto se observa, de maneira geral, a ausência de conhecimento sobre o patrimônio por parte de grande número da população. O resultado dessa soma é problemático. O patrimônio é definido a partir de seu significado histórico, como parte essencial da formação cultural e da identidade de um povo. Se eu conheço esse bem e como sua história interage com a minha, cria-se um laço afetivo consolidado pela memória. O bem se torna prioridade. Vemos isso em situações como a comoção gerada pelo incêndio da Catedral de Notre Dame, em Paris. Se não há conhecimento, não há reconhecimento. Não há a compreensão do valor ou significado do bem ou sentimento de perda, não há reflexão sobre a possibilidade de destruição, e ela continua. As construções contemporâneas são obviamente importantes e necessárias, a própria história deve continuar e novos bens, naturalmente, devem ser criados. Mas é importante lembrar que nossa cidade ainda possui bastante espaço para novas construções, sem que se tenha que destruir os bens históricos.
O POVO: Qual a importância da preservação do nosso patrimônio?
Jacqueline Holanda: A herança histórica de um povo é fundamental para a própria consolidação desse reconhecimento de que estamos unidos culturalmente, partilhando uma identidade. Os bens patrimoniais são as evidências do que já fomos capazes de criar, do que nossos antepassados conseguiram realizar, de como a cidade consolidou seus processos de transformação ao longo do tempo. A consciência do que já fomos capazes de realizar suscita orgulho e autoestima como povo. Cada obra histórica compõe uma parte dessa trajetória e cada perda compromete a memória coletiva e essa autoestima que preenche nossa identidade cultural.
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