Como num desses folhetos com paisagens edênicas distribuídos por religiosos, o fim está próximo no novo romance de Natalia Borges Polesso, "A extinção das abelhas" (Cia das Letras). Dele, porém, não se sabe muito, sequer se pode situá-lo no tempo e no espaço. Está por toda parte, e todo corpo transporta sua ruína.
É um livro repleto de mulheres, de mulheres relacionando-se com mulheres, mulheres amando-se, mulheres que abandonam outras mulheres. É um livro distópico, mas cuja imagem reflete a de um certo país fictício em que o presidente é um apresentador de TV, as cidades se conflagraram, a economia se deteriorou e o ecossistema colapsou.
Tudo muito perto, mas longe, num jogo de referências e procedimentos ficcionais que embaralham os registros literários e os discursos.
Polesso narra o que poderia projetar-se como futuro próximo do Brasil, caso o agora, atravessado por falências e ataques, se prolongue por mais quatro e depois mais quatro anos. É um alerta, uma advertência.
Mas também aceno à possibilidade de uma outra vida, uma adivinhação de futuro. Lá pelas tantas, uma personagem abre um livro à procura de uma foto. Encontra-a no capítulo chamado "Ruína y leveza" - não por acaso, dois movimentos em torno dos quais a história de Regina se processa.
Regina: mulher na casa dos trinta, acadêmica na área de Literatura, melancólica, num relacionamento indefinido. Queria estabilidade, mas tudo que o mundo oferece é chão cediço. Nesse ambiente volátil política e afetivamente, começa a apresentar-se como "camgirl" - uma garota que se exibe na web, despida ou não.
Um detalhe: Regina performa fantasias sexuais vestindo uma máscara de gorila, uma referência à mãe, que havia fugido com o circo - literalmente - durante os anos 1990 e assumido o papel de "Monga" desde então.
Uma das vozes mais originais da nova geração de autores brasileiros, Polesso elabora fragmentos e pistas desse colapso planetário, que não começou agora, tampouco se encerra com o fim da pandemia, construindo uma narrativa ágil que flui à medida que esse apocalipse se revela.
Nela, cada palavra que encerra um capítulo é também a que inicia o seguinte, enredando o leitor nessa trama em que fim e começo são circulares e a órbita das personagens se altera indefinidamente, como dois sóis - uma imagem que cumpre função importante dentro da história.
Em conversa com O POVO, a escritora gaúcha tratou da criação do livro, seu segundo romance - o primeiro é "Controle" (Cia das Letras) e dos desafios em tempos de crise sanitária.
"Essa ideia de colapso não é só da natureza", fala a autora, "mas de tudo, da sociedade, das relações". Nem apenas se dá a perceber na esfera da coletividade.
É como se essa precariedade fosse o elemento ordenador das histórias que povoam o romance, de Regina a Eugênia e Denise, fazendo desse abismo com que se deparam o motor do ficcional.
Sobre as personagens, Polesso, que é doutora em Literatura e pesquisadora bolsista, responde que, desde o começo de sua carreira como escritora, decidiu "que sempre queria escrever sobre pessoas lésbicas ou bissexuais", ressalvando que "aquilo não fosse uma tarja temática".
"É importante que as personagens estejam ali, mas que a leitura não seja redutora", conta. "Quase todas as personagens são lésbicas ou bi em 'A extinção das abelhas', e nem por isso é um romance lésbico, é distópico. O que me incomoda é que a leitura seja redutora, que seja uma não leitura."
Nesse sentido, diz não se incomodar que a identifiquem com um campo ou conjunto de questões dentro do panorama literário. "Nunca me incomoda o fato de ressaltarem minha sexualidade ou o que for. Isso é legal, inclusive", atesta.
Escrito desde 2016 e finalizado no início de 2020, "A extinção das abelhas" conjuga as multiplicidades contidas nessa derrocada social, narrada ora em terceira pessoa, ora em primeira, sob um prisma particular, mas que deriva de uma crise que é partilhada por um corpo mais amplo.
Ao falar de Regina, de suas agonias e impasses, Polesso faz o leitor examinar-se e a seus semelhantes num momento em que o entorno interpela constantemente o leitor, levando-o a suspeitar de que o que lê constitui, na verdade, uma antecipação do futuro.
Carola Saavedra lança novo livro
O que pode a literatura neste tempo de colapso? "O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim" (Relicário) é a resposta da escritora Carola Saavedra a essa pergunta. Mais pergunta que resposta, na verdade, a obra se constitui numa série de jogos de referências e atravessamentos de campos da arte e das ciências.
Romancista, Carola percorre uma infinidade de temas aproximados, estabelecendo entre eles um nexo no centro do qual está uma busca, jamais concluída, de aclarar o presente e suas relações marcadas por ciclos que se exaurem.
Para tanto, ampara-se na psicanálise, na literatura indígena, nas visões de mundo da antropologia e da sociologia, nas autoras que estão no seu cânone pessoal, em exposições e filmes.
"Talvez este livro se aproxime mais de uma longa conversa", avisa a autora logo no prólogo, reconhecendo não se tratar de ensaio na acepção mais comumente empregada da palavra, mas dessa modalidade de comunicação em que os assuntos não são regidos por hierarquias.
"O mundo desdobrável", dessa maneira, se abre aos olhares e percepções, fazendo do diverso um método de chegada à matéria do contemporâneo.
Autora de "Toda terça", "O inventário das coisas ausentes" e "Flores azuis", Carola investiga o tipo de resposta que a literatura pode dar quando o próprio conceito de civilização e os pilares do que se entende por civilidade e sociedade estão sob ameaça por toda parte.
Estante de livros
A universidade desconhecida
Livro de Roberto Bolaño
832 páginas
Quanto: R$ 99,90
Cia das Letras
O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero
Livro de Carla Rodrigues
224 páginas
Quanto: R$ 54,90
Editora Autêntica
O nervo óptico
Livro de María Gainza
144 páginas
Quanto: R$ 54,90
Editora Todavia
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