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Leituras de um tempo caótico: a poesia de Ana Martins Marques
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Leituras de um tempo caótico: a poesia de Ana Martins Marques

Romances travam conversa íntima a partir de vivências pessoais, memórias da ditadura, reflexões poéticas sobre o outro e o exame dos papéis sociais em tempos de pandemia
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Escritora Ana Martins Marques é autora de
Foto: Rodrigo Valente de Noronha/Divulgação Escritora Ana Martins Marques é autora de "Risque esta palavra" (Cia das Letras)

"Fazer as malas é tarefa impossível", escreve a poeta mineira Ana Martins Marques, acrescentando depois: "aquele que ainda não partiu tem que colocar na mala aquilo de que precisará aquele que vai chegar". O livro de que extraio esse trecho, "Risque esta palavra" (Cia das Letras), está repleto de exercícios de difícil execução, como parar de fumar, falar outra língua e amar.

Em tempos de pandemia, a leitura se confronta permanentemente com o real. Difícil supor capacidade de abstração que nos faça alheios ao mundo enquanto mergulhamos num livro. Tudo se atravessa e se enreda.

De algum modo, porém, ler se constituiu, nesses meses de agonia sanitária e política, em um exercício de livramento, de salvação e autopreservação. Um ato político, talvez, sobretudo quando se sabe que o presidente e seus ministros investem continuamente contra tudo que represente força de pensamento e capacidade de fabulação.

Os poemas de Ana Martins Marques são exemplo disso. Lançados em meio ao surto da Covid, abrem fissuras na linguagem através da qual convocam não ao esquecimento de si, mas ao retorno a esse real, agora munidos, nós, leitores, de uma gramática alargada.

Porque é isso que faz o trabalho poético de AMM. Confere imensidão ao pequeno, amplia o miúdo e abarca o roto e o vício, como se passageiros de uma roda-gigante instalada dentro da própria casa - esse espaço doméstico dentro do qual seguimos por mais de ano e meio, personagens de uma história também particular e cheia de interrupções e sobressaltos.

"É uma alegria haver línguas que não entendo", confidencia a poeta, cuja escrita conversa intimamente com outras autoras publicadas nesse primeiro semestre em português. Todas ajudam a revelar, numa dicção própria, uma dimensão do cotidiano antes descoberta, usando repertório que varia segundo as necessidades narrativas, inclinações e vivências de cada uma dessas escritoras.

Aos confinados, "Mérito" (Todavia), de Rachel Cusk, chegou num momento paradoxal: romance que trata essencialmente de fluxo (o segundo volume da trilogia se chama "Trânsito") e interroga a realidade e a construção de papéis sociais, foi publicado quando o mundo estava retido num universo de quatro paredes.

É curiosa a leitura de Cusk nestas circunstâncias. Privados do espaço público e, por extensão, do encontro com esse outro contra o qual nos reconhecemos, apenas adivinhamos a voz quase nunca ouvida da narradora, Faye, também ela escritora, mãe de dois filhos, recém-divorciada e em deslocamento por países cujos nomes não são mencionados.

Faye/Cusk desmontam o jogo de espelhos enquanto fazem desaparecer um "eu" ordenador da escrita, essa parte de si responsável por refletir o que entendemos como nossas identidades de sujeito. Em "Mérito", obra que encerra essa maravilhosa trilogia, mais uma vez a mulher por trás da história submerge com o propósito de colher a voz de um outro. Como se convidasse ao silêncio absoluto para acurar a habilidade de ouvir - que teríamos perdido em meio a tanta estridência.

Foi justamente porque desejava ser ouvida que a romancista Carmen Maria Machado escreveu "Na casa dos sonhos" (Cia das Letras), livro arrebatador na forma e no conteúdo - na forma porque embaralha os gêneros, no conteúdo por se tratar de denúncia de uma relação abusiva infligida pela companheira.

Autora já reconhecida por "O corpo dela e outras farras" (Planeta), Machado agora apresenta um caleidoscópio literário, numa sucessão de capítulos curtos que flertam com o horror existencial, os filmes B dos anos 1980, a ficção científica, o ensaio, o jornalismo, os manifestos feministas e outros tantos regimes de discurso, tudo manejado com habilidade. O resultado é um livro diverso, dolorido porque devotado à exposição minuciosa de uma ferida da qual a composição da própria obra de arte é parte e na qual o ato da escritura se revela enquanto é executado.

A montagem desse mapa afetivo, geográfico e literário se completa com um olhar que fustiga o presente a partir do passado - ou, pelo contrário, reencena o passado à luz do presente. "Space invaders", de Nona Fernández, uma preciosidade publicada no Brasil pela editora Moinhos, apresenta ao leitor local uma das vozes mais autênticas da literatura contemporânea.

Nessa novela, a escritora chilena trata da ditadura militar no seu país natal, de sua permanência e reverberação nos dias de hoje, de uma violência concreta e simbólica que se perpetua, tudo filtrado pelo olhar infantil, numa linguagem que contrasta a ludicidade do jogo com a brutalidade do fato: a morte, o desaparecimento dos presos políticos e a lenta recuperação do trauma.

Fernández é uma narradora poderosa que nos faz lembrar constantemente de que a tirania dos autoritários está sempre à espreita, prestes a saltar e tomar o que se tem de mais valioso: o tempo, a imaginação, a vida.

Joan Didion em dose dupla

"Os escritores estão sempre traindo alguém", seja o leitor, seja o entrevistado, seja o editor, parece querer dizer Joan Didion, 86. Nos seus livros, Didion pode trair qualquer um, menos a si mesma, cuja inteligência e porte físico miúdo a colocam sempre em condição de flagrar o mais íntimo nas situações que relata.

Da autora, chegam ao Brasil dois livros seminais: "Rastejando até Belém" (Todavia), primeira reunião de ensaios de Didion, e "O álbum branco" (Harper Collins), outra coleção de peças não-ficcionais, forma pela qual a escritora nascida na Califórnia se notabilizou, vencendo prêmios importantes no seu país.

Tome-se qualquer um dos artigos desses dois volumes: cada um deles é resultado de uma combinação equilibrada entre agudez de observação, discrição e uma capacidade narrativa fluida e atraente. A prosa de Didion é uma elegante máquina de perfurar camadas que resistem à primeira vista, como a cultura norte-americana dos anos 1960, tema onipresente no seu trabalho.

Premiada ensaísta, mas também autora de ficção, a escritora apresenta nesses livros talvez o melhor de suas narrativas jornalísticas, digamos assim, com alguma reserva para não haver risco de confiná-la num rótulo.

Em comum, há a tentativa de flagrar o que vai sob a camada de euforia nos fenômenos que marcaram a história recente dos EUA. Seja escrevendo sobre Jim Morrison, Charles Manson ou crianças ingerindo ácido na San Francisco de 1967, Didion cumpre rigorosamente o propósito que anima sua escrita: um híbrido de ensaio pessoal, reportagem e crônica de costumes.

Lista de leituras do 1º semestre

- Mérito (Todavia), de Rachel Cusk
- Risque esta palavra (Cia das Letras), de Ana Martins Marques
- O lugar (Fósforo), de Annie Ernaux
- Na casa dos sonhos (Cia das Letras), de Carmen Maria Machado
- Space invaders (Moinhos), de Nona Fernández
- A visão das plantas (Todavia), de Djaimilia Pereira de Almeida
- A idiota (Cia das Letras), de Elif Batuman
- Raiva (Rua do sabão), de Monica Isakstuen
- A estrangeira (Todavia), de Claudia Durastanti
- E por olhar tudo, nada via (Relicário), de Margo Glantz

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