Preta Gil caminha descalça na areia, sentindo a brisa do mar. Por vezes, a água banha seus pés. Numa praia, aparece ao lado de Fran, seu filho; Sol de Maria, sua neta; e Rodrigo Godoy, seu marido. Entoa: "Hoje eu acordei com alegria, descalço, na areia, de frente pro mar/ Fechei os meus olhos pra sentir o vento levar/ Todo o mal pra longe daqui/ Pra tudo o que é bom chegar". A cena e os versos pertencem a "Meu Xodó" (2021), single da artista em parceria com seu filho Fran.
A canção, disponível nas plataformas digitais, reflete sobre diferentes conexões: alegria, espiritualidade, renascimento, esperança e ancestralidade. Com direção de Aisha Mbikila, o videoclipe, disponível no YouTube, contempla tudo isso num cenário conectado à natureza. Preta e Fran mesclam elementos de vários ritmos, como afoxé, funk e samba. Além de Fran, assinam a composição Pablo Bispo, Ruxell e Sérgio Santos.
Preta apresenta o trabalho após dois anos sem inéditas. Prestes a completar 20 anos de carreira artística — desde a produção do disco "Prêt-à Porter" (2003) —, a cantora, atriz e apresentadora segue sendo símbolo de empoderamento feminino, especialmente o da mulher preta. Ela também é empresária. "Meu Xodó" foi lançada, inclusive, pela Blacktape — seu selo. A artista ainda é sócia da Mynd, agência que liga artistas e influenciadores a marcas. Uma extensão daquilo que sempre gostou de fazer: criar conexões.
A múltipla Preta Gil é carioca, mas criada na Bahia. Leonina nascida em 8 de agosto de 1974. Filha do cantor e compositor Gilberto Gil com Sandra Gadelha. Afilhada da cantora Gal Costa. No clipe de "Meu Xodó", seu pai narra: "Xodó é dengo, é apego, é chamego/ Abraço caloroso, beijo quente/ Beiju com manteiga". Ao O POVO, Preta diz o que a palavra significa para ela. Também comenta sobre carreira, representatividade, ataques e delícias da web, e lado empresarial.
OP - Ao pensar na palavra "xodó", para onde sua memória te leva?
Preta Gil - A palavra foi ganhando significados diferentes ao longo do tempo para mim. Depois da quarentena, "xodó" começou a me remeter conforto, carinho, amor, seja de quem for. É aquela sensação de aconchego, que pode vir de uma pessoa, um momento, até uma comida, mas que te abraça, te acolhe. Lembra minha família, cada membro dela, a sensação de poder vê-los bem, passar um tempo com eles… Lembra momentos em que eu estava para baixo e só de encontrar a Sol meu dia se transformou. Momentos que eu estava no fundo do poço e o Fran me estendeu a mão para me tirar de lá.
OP - Este ano foi difícil. Você perdeu sua avó materna, dona Wangry, e seu amigo, o ator Paulo Gustavo, enquanto o País somava 400 mil mortos pela Covid-19. Quando Fran mostrou a canção, escrita para você, o que sentiu?
PG - Senti uma estranheza… Não porque não tinha gostado, mas porque algo ainda não estava certo. Comecei a implicar um pouco, dizer que "xodó" era algo de namorado, que não era música de filho e mãe cantarem. Eu não estava em um bom momento. A música não me "bateu" da forma que deveria. Oito meses depois, quando eu estava ainda mais fundo no poço, escutei a música de novo e ela me trouxe uma sensação completamente diferente. Alegria, paz, vontade de gravar.
OP - Como decidiram gravar juntos?
PG - Estou em um grupo de trabalho dele e vi uma mensagem: "gente, minha mãe não quis a música, acho que vou gravar sozinho". Na hora, eu me pronunciei! (risos) Fui questionar! "Como assim gravar sem mim? Você fez pra mim!" Na hora já avisei que ia gravar. Precisou desse sentimento de quase perda para que viesse o incentivo de gravar. Dois meses depois, já estávamos com tudo pronto. Foi tudo feito em família, com muito cuidado. Conversamos e concordamos sobre todos os processos, desde a gravação até a escolha da direção do clipe. Quisemos deixar tudo muito íntimo, muito verdadeiro. Acredito que conseguimos.
OP - Como a temática da ancestralidade atravessa sua vida e o quão valioso é passar esse afeto às novas gerações?
PG - Para mim, e para toda minha família, a ancestralidade é quase espiritual. Algo que a gente não explica com palavras. Essa conexão nos traz paz, amor, nos ajuda em todos os âmbitos da vida. Durante a quarentena, foi essencial. No meu caso, me salvou. Meu filho e minha neta me salvaram e me ajudaram a passar por tudo que passei, me fazendo entender, de novo, o valor da vida, de ter alguém em sua volta, de estar em família.
OP - Com a direção de Aisha Mbikila, o videoclipe foi gravado durante um dia inteiro numa praia. Gostaria que você contasse um pouco de como se deu a parceria com a diretora e de que forma vocês construíram O conceito visual da produção.
PG - A Aisha foi uma luz para nós. Ela é uma diretora jovem, mulher, que trouxe para o clipe todo o ar de renovação, de renascimento que queríamos. Nós sentamos juntos para decidir tudo do clipe e queríamos algo simples, bonito, que passasse a energia que queríamos transmitir com a música. A praia, em si, é um lugar cheio de energias. A gente quis incluir o nascer do sol e o pôr do sol, que são momentos bem energéticos também. Tudo foi pensado para passar a mensagem que queríamos. Deixamos a Aisha super a vontade, e ela foi essencial para que o clipe tivesse o resultado que teve.
OP - Desde o início da carreira, você fala sobre representatividade, inspirando muitas pessoas. Como você vê isso e o quanto ainda temos que avançar?
PG - Fico muito feliz em poder, de certa forma, levar esse debate para outras mulheres. Sinto que tenho muito a aprender, sempre temos. Evoluí demais nos últimos cinco anos e sinto que ainda estou em processo de aprendizado. Hoje, vejo um avanço enorme em representatividade de forma geral, o que me deixa muito feliz. Eu mesma, com a Mynd, sempre tento trazer cada vez mais pessoas que possam falar sobre isso, que são exemplos. A sociedade no geral ainda tem muito que aprender, mas tenho fé na geração que está vindo. Percebo que estão muito à frente e que trarão muita revolução boa para nós.
OP - Quando você começou a falar sobre aceitação, já ouvia ataques machistas, racistas e gordofóbicos. A internet intensificou esses comentários. Isso te movimenta de alguma forma?
PG - Não costumo dar atenção. Tenho quase 20 anos de carreira, aprendi, com o tempo, a saber o que dar atenção e o que ignorar. Mas, se tem uma coisa que faço questão, é de perceber comentários que são crimes. Por exemplo, um comentário racista. Sempre que vejo, faço questão de contatar meus advogados. Nas minhas páginas, criminoso não sai impune, pelo menos eu faço o possível para que não aconteça.
OP - A internet também tem sua potência. Recentemente, o hit "Só o amor" (2019), sua parceria com Gloria Groove, voltou a viralizar, com um desafio nas redes sociais. O que está achando dos vídeos com a emblemática frase "ela faz o destino dela"?
PG - Eu acho incrível! A mensagem de "Só o amor" é linda e, mesmo com a nova versão que está no Tiktok, consigo ver o carinho que as pessoas têm por ela. Estou acompanhando tudo, amando e me divertindo muito, a internet é muito criativa. Acho que temos mesmo que nos reinventar, sempre.
OP - O que te impulsionou a empreender e como você equilibra essa atuação com as artes?
PG - Sempre fui uma pessoa que ama criar conexões e fazer ponte para as pessoas. Antes de pensar em ser empresária, já fazia isso. Ajudava uma amiga que eu sabia que ia ser perfeita para tal marca. Apresentava um artista novo para um contato em gravadora. Isso foi gerando resultado e eu comecei a perceber que levava jeito e que poderia ajudar ainda mais se estivesse presente em todos os processos, de forma oficial (seja com um selo ou com uma agência). Isso foi tomando um caminho natural. Como amo muito fazer tudo isso, o equilíbrio acaba se tornando fácil.
OP - São seis álbuns lançados, sendo símbolo de autoestima, levantando diversas lutas… Para finalizar, como você vê a sua caminhada nestes 20 anos de carreira e o que vem por aí?
PG - Vejo que fiz uma caminhada linda, com muitos aprendizados e que, com muita força, consegui realizar diversos sonhos. Ainda tenho muitos sonhos a serem realizados. Então, muita coisa está por vir. Uma Preta diferente, mas sempre com o alicerce igual.
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