Como seria introduzir em uma história choques entre mundos? Sim, no plural: o choque, por exemplo, entre duas culturas diferentes, e também o choque entre o mundo dos vivos e o dos mortos? No livro "Um Coreano em Minha Vida", de Katherine Laura Leighton, as possibilidades não se encerram nesses aspectos, mas se destacam neles. A obra apresenta reflexões sobre a morte, novas roupagens para a necromancia e a figura do ceifador, lida com traumas e, em meio a todo esse cenário, consolida o romance entre uma brasileira e um sul-coreano.
No enredo da obra, o leitor se depara com o cruzamento de histórias entre a jovem paulistana Elleanor e o sul-coreano Park Jae Young. Os dois têm peculiaridades que marcam suas vidas: para a brasileira, a capacidade de se comunicar com pessoas que já faleceram; quanto a Park Jae Young, são destaques perdas que sofreu mesmo com tão pouca idade. Soma-se a esse último fator a necessidade de se acostumar com uma cultura diferente da sua ao se mudar para o Brasil.
Eles se conhecem ainda na infância, ela com 5 anos de idade e ele com 9. Rapidamente se tornam grandes amigos e, com o tempo, o casal desenvolve uma forte relação de amor. Entretanto, uma série de conflitos leva Park a voltar para sua terra natal. Enquanto a distância separa os protagonistas, Elleanor precisa aprender a lidar melhor com seus dons e, para isso, recebe a ajuda do ceifador Gael - aqui, porém, sem o imaginário tradicional que cerca sua simbologia: em vez de foice e roupas pretas, uma versão mais "humanizada".
A partir disso, Katherine Laura Leighton apresenta novas roupagens para "lendas comuns" da cultura sul-coreana, como histórias sobre fantasmas e a figura do Ceifador. A escrita da autora leva ao leitor outras visões sobre a morte e traz o reencontro entre os protagonistas após bastante tempo. Entretanto, muitas coisas mudaram desde então.
O desejo de desenvolver essa história está diretamente relacionado ao interesse da escritora pela cultura sul-coreana. Essa imersão data de há pelo menos três anos, em 2018, quando Leighton começou a buscar produções de romance romântico em serviços de streaming. Como já havia assistido a muitos filmes e séries ocidentais, decidiu diversificar seu consumo e encontrou a série chinesa "Jardim de Meteoros". Com isso, ramificou as obras até alcançar o universo dos doramas sul-coreanos, pelos quais ficou fascinada.
A paixão de Katherine, aliás, não é isolada: uma pesquisa do Ministério da Cultura, Esportes e Turismo feita entre setembro e novembro de 2020 apontou que o Brasil é o terceiro lugar no mundo e o primeiro nas Américas onde houve maior aumento de audiência dos doramas coreanos.
Katherine tem apreço pela escrita desde sua infância, mas essa rotina se profissionalizou após o nascimento de seu filho. O que começou com leitura de contos de fada e gibis se desenvolveu para o aprofundamento em histórias mais complexas. Para a autora, a escrita "era como um refúgio", e o que não conseguia falar para ninguém era posto em seu diário por meio de suas palavras.
"A primeira vez que eu escrevi um romance foi no auge da minha depressão. Para sair dela, precisei de algo além da terapia e da medicação. Foi com a escrita que eu consegui essa ajuda para sair da parte mais crítica", relata.
A autora buscou cursos de escrita criativa para desenvolver seus trabalhos. Além de "Um Coreano em Minha Vida", Katherine Laura Leighton já publicou os livros "Todas as Vidas de Um Coração", "Guardada em Mim" e "Há 12 Dias do Natal". Os cursos foram importantes para que a Leighton investisse na técnica de escrita e na estruturação de suas obras, com grande destaque para o processo de pesquisas.
Ao desenvolver o enredo da obra, Katherine Laura Leighton utilizou diferentes mecanismos para se aprofundar na cultura coreana. Além de pesquisas em sites especializados, ela fazia anotações ao assistir doramas para organizar detalhes observados nas produções. Assim, buscava pesquisar o que via de diferente para saber "se aquilo era realmente era diferente ou se era apenas um ponto de vista".
Diante disso, ela se deparou com um grande desafio: o de conseguir transmitir em sua obra as diferenças culturais de uma maneira que não gerasse "nenhum tipo de preconceito" ao abordar tradições coreanas. As pesquisas foram importantes também para a construção até dos diálogos entre os personagens. "Tem que ter um embasamento muito grande para conseguir passar essa realidade. Não adianta eu querer construir um personagem de outro país se não conseguir me aprofundar", alerta.
Foram várias as inspirações para a história de "Um Coreano em Minha Vida". Katherine destaca "o respeito que os coreanos têm uns pelos outros" e a "mitologia" da região, como percepção sobre fantasmas. Outro aspecto que a escritora queria abordar no enredo era a sensação do "ser diferente" e que isso não é algo ruim. Diante disso, pôs na Elleanor, a protagonista, o "dom de ser uma bruxinha necromante", visão mais presente no mundo ocidental.
A necromancia envolve a comunicação com os mortos e muitas vezes "é vista como algo ruim". Na história do livro, porém, a abordagem é outra, e o dom de Elleanor é utilizado para ajudar pessoas que já morreram a "entenderem que o que ficou para trás não está mais no poder delas e que elas precisam seguir seus caminhos". "Uma criança de 5 anos de idade não consegue entender isso, e quando ela conhece o Park Jae Young ele a ajuda compreender seu dom, e daí se forma uma grande amizade", enfatiza Leighton.
Ela continua: "O 'ser diferente' é algo que eu retrato na história como uma coisa boa. Você pode usar o que tem de diferente como algo positivo para fazer o bem e para ajudar os outros. Não é porque você é diferente que você é ruim. Ser diferente também é bom".
Mesmo sem visualizar os "fantasmas" enxergados por sua amiga, Park Jae Young consegue transmitir pensamentos de sua cultura para Elleanor. "Ele explica de uma forma bem lúdica para ela, da maneira que ele entende e de como encara o que é um fantasma. Ela começa a entender que o que vê não é um amigo imaginário como seus pais diziam, mas alguém que precisa de ajuda", afirma a autora Assim, Elleanor perde seu medo e passa a explicar aos "fantasmas" que eles não fazem mais parte desse mundo.
A autora lembra das divergências culturais entre seus personagens e acrescenta: "Colocar essas diferenças é um pouco complicado, sim, mas quando você põe de uma forma em que um respeita o outro, dá tudo certo. Eu gosto da mistura, acho que esses opostos sempre dão muito certo, porque não são opostos que brigam, são opostos que se complementam".
Imerso em diferentes mensagens sobre relações entre culturas, o livro, para Katherine, pode apresentar também ao leitor outras lições: "A morte não precisa ser vista como algo totalmente ruim. Nós podemos guardar aquilo que foi bom e as lembranças e lições deixadas pelas pessoas. No livro, eu também tentei transmitir a mensagem de que você deve aproveitar o melhor de sua vida e não perder oportunidades. Às vezes, deixamos de falar e fazer algo pensando que teremos tempo, mas não sabemos, de fato, quanto tempo nos resta".
A autora acrescenta: "Eu acho que a maior lição de 'Um Coreano em Minha Vida' é a de você tentar realizar o que quer, dizer o que sente, conviver com quem ama e não ficar guardando isso apenas para si. Não é para deixar para fazer algo mais para frente. Temos que ir atrás daquilo que desejamos".
O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker. Confira o podcast clicando aqui
"Um Coreano em Minha Vida"
De Katherine Laura Leighton
Arcádia
433 páginas
Quanto: R$ 8 (e-book; gratuito no Kindle Unlimited) e R$ 63,90 (livro físico)
Onde comprar: Amazon, Grupo Editorial Arcádia, Submarino e Mercado Livre.
Acompanhe a autora
Onde: @autora.katherinelaura no Instagram