Se a estrutura do Theatro José de Alencar (TJA) pudesse falar, talvez diria aquela palavra tão emblemática da língua portuguesa: saudade. No último dia 10, o O POVO acompanhou as gravações dos shows das cantoras Alice Caymmi, Luiza Nobel e Mel Mattos no palco deste templo artístico do Ceará. Nos bastidores, um registro impensável antes de março de 2020, quando a pandemia da Covid-19 chegou ao Brasil: máscaras, álcool, testagens e medição de temperatura. Ao mesmo tempo, via-se a esperança da produção com a ampla vacinação da Capital e a retomada, aos poucos, do setor cultural. Durante as apresentações, uma cena simbólica: plantas em vasos, espalhadas por onde estaria a platéia, assistiam ao repertório das artistas.
As gravações integram a programação do Ecléticos Livre Festival, que ocorre de 25 de setembro a 16 de outubro, aos sábados. Após os isolamentos sociais rígidos para conter o avanço do coronavírus em Fortaleza, o evento retorna num formato virtual, em edição comemorativa pelos seus cinco anos de existência.
Também participam do festival Tiê, banda Dunarey, Isabela Moraes e Bruna Ene. Entre as formações, há o painel "Economia Criativa em Tempo de Pandemia: Criação e Empreendedorismo". Com apresentação de Valmir Lins, as transmissões acontecem pelo canal no YouTube e pelo Instagram da WM Cultural. Já os podcasts "A reinvenção nos Festivais" e "Cultura, Cidadania e Meio Ambiente" estarão disponíveis no Spotify.
Com a temática "Música feat. Natureza", a ideia é transportar para o formato on-line a essência das edições anteriores, realizadas em espaços abertos da Cidade, como o Parque Estadual do Rio Cocó. Sustentabilidade, acessibilidade e mobilidade urbana são alguns dos valores perpetuados pelo projeto. Quando ainda era possível aglomerar, o festival unia musicalidade à consciência ambiental e social, com ações de coleta seletiva, distribuição de mudas de plantas e transporte gratuito para a juventude fortalezense.
O produtor cultural William Mendonça, idealizador do Festival, lembra que a presencialidade é o ponto central do setor de eventos. "Temos o histórico de cinco anos, com a mobilização de mais 40 mil pessoas. A pandemia impactou artistas, técnicos, fotógrafos, eletricistas e outros profissionais. E a nossa arte é comunicação. Temos uma relação de muito cuidado e carinho com o público e tivemos que nos reinventar".
Para traduzir essa conexão, William afirma: "Mantemos, agora com a linguagem audiovisual, o caráter plural do evento. Esses encontros estéticos têm um papel político. Por meio das obras, há o fortalecimento da nossa arte e existência. Para tanto, a curadoria contempla atrações locais, regionais e de outros estados do Brasil.
Segundo William, escolher o TJA como "território de atuação" desta edição enaltece a cultura do Estado. O ator Pedro Domingues, diretor-geral do TJA, celebra: "É um casamento conceitual, porque a gente entende o TJA como patrimônio de todos os públicos, gostos, correntes artísticas, filosóficas, sociais. Podemos mostrar o que o Ceará produz e como o Ceará recebe. O Ecléticos é uma oportunidade da gente experimentar todo o nosso potencial de receber diversas linguagens. O conceito casou, inclusive, pela relação com a ecologia. O Theatro tem bastante espaço aberto, ao ar livre, com o Jardim de Burle Marx".
Luiza Nobel
A cantora e compositora cearense Luiza Nobel estará ao lado dos músicos Zeis e Glauber Alves Silva. No repertório, canções como "Estamos bem", "Cheiro de Feijão Verde" e "Let's burn" (parceria com o rapper Nego Gallo). Durante a pandemia, Luiza passou por diferentes processos. No início, esteve mais introspectiva. Teve, inclusive, de adaptar o videoclipe de "Estamos bem" para o momento que a humanidade passava. O que era para ser um registro de várias garotas saindo na rua, "curtindo" a Cidade, foi ressignificado. "Contei a história num contexto em que todo mundo estava nas suas casas", conta. A produção foi realizada em sua morada.
"Let's Burn" marca um segundo momento da artista nesse período. "Foi muito difícil. Meu trabalho, que é a minha renda, vinha de estar na rua, de estar com pessoas. Como juntar o restante de recurso para lançar música e clipe? Você fica desestimulado", revela. Ao mesmo tempo, Luiza não desistiu. Com o avanço da vacinação e a flexibilização dos isolamentos, a cantora gravou o clipe pelas redondezas de seu bairro, o Jardim América. "'Estamos bem' mostrou o meu lado íntimo, já 'Let's Burn' mostrou a minha galera", diz.
Segundo Luiza, o que a movimenta é a história da música preta cearense. "Ter outros artistas e outras linguagens trabalhando comigo me dá fôlego, porque o meu trabalho hoje não é só a música, também é o que eu tô vestindo e o que eu apoio". A artista ressalta que, durante a apresentação no palco do TJA para o Ecléticos, ela vestia Tropicana — marca cearense de design autoral, com peças produzidas à mão. "É isso, aliar o meu trabalho com o de outras pessoas e continuar fazendo resistência".
Mel Mattos
Mel Mattos, também cantora e compositora cearense, já participou de outras edições do Ecléticos. Ela recorda algo que "pode até parecer besteira, mas não é" — afirma. "No primeiro festival, eu me emocionei. Estava sentada no anfiteatro do Parque do Cocó e a produção distribuiu sacos de lixo para o público. As pessoas começaram a usar, para não deixar o lixo na grama. Parece bobo, mas eu fiquei tão emocionada. Eu pensei 'Poxa, que bacana. Também é uma forma de educar. Tô aqui vendo artistas que eu não conhecia, companheiros de trabalho tocando com uma estrutura incrível… Tendo a oportunidade de fazer intercâmbio com outros colegas num lugar da minha Cidade, na natureza", conta.
Para Mel Mattos, artistas independentes têm uma relação profunda com a ocupação da Cidade. Durante o bate-papo com O POVO no TJA, a artista disse: "Estamos num patrimônio. Essa relação é de muito carinho, de entender o quanto essa Cidade é linda. Estou num lugar incrível! A arte, a música, se interligam com tudo. Com a arte urbana, com os equipamentos. É a nossa casa". Em 2020, inclusive, a artista gravou o especial "Canções de Dominguinhos" no Foyer do TJA. A apresentação, disponível no YouTube, homenageou o instrumentista, cantor e compositor pernambucano.
A cantora evidencia o protagonismo de artistas cearenses em festivais como o Ecléticos. "A gente vem quebrando essa maneira de se portar perante aos artistas nacionais, porque não existe isso. A gente também é nacional, né!? Isso cria para nós, enquanto artistas cearenses, uma autoestima. Para a gente entender que é tão artista em qualquer lugar do mundo".
Programação
25 de setembro
10 horas: podcast Ecléticos Livre EP 1 – “A reinvenção nos Festivais: Sustentabilidade novos rumos”, no Spotify
2 de outubro
10 horas: podcast Ecléticos Livre EP 2 – “Cultura, Cidadania e Meio Ambiente”, no Spotify
15 horas: painel “Economia Criativa em Tempo de Pandemia: Criação e Empreendedorismo”, com Tiê, Valmir Lins, André Brasileiro e William Mendonça, no YouTube
16 horas: palestra
9 de outubro
16 horas: programa show com atrações musicais, no YouTube
16 de outubro
16 horas: programa show com atrações musicais, no YouTube
Festival Ecléticos
Quando: aos sábados, entre 25 de setembro e 16 de outubro
Onde: YouTube
Mais informações: @festivalecleticos
O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker. Confira o podcast clicando aqui