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Acima do frenesi
Vida & Arte

Acima do frenesi

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conto colagem (Foto: Letícia Bernardo)
Foto: Letícia Bernardo conto colagem

Na cabeça, uma coroa de madrepérolas e, por sobre o dorso, um manto escarlate, bordado com fios de ouro. À sua passagem, sob o pálio do pajem, todos os mortais querem tocá-lo, como quem toca em pura contrição as imagens sacras. Seu destino: uma predestinação ao êxito. A seus pés, mesuras no mármore dos palácios. Ao seu redor, a pompa de tapetes, esculturas e espelhos. Ao seu dispor, carruagens atreladas a cavalos de crinas brancas. Para despir, um harém de cortesãs. À mão do monarca, o cetro. No corpo, a graça da juventude, a volúpia e o requinte de um rei absolutista que tem escravos e poder para prender rebeldes em masmorras, construir catedrais, obeliscos e arcos do triunfo.

Entretanto, numa tarde em que o sol se expande feito uma metástase, dá-se nele o contrário de tanta luz. Inexplicavelmente lhe invade a penumbra de uma dor e a partir daí já não fascinam as madrepérolas, os fios de ouro, o mármore dos palácios, a pompa dos tapetes, o reflexo dos espelhos, as carruagens, as cortesãs, o cetro, a juventude, a volúpia, o requinte, as catedrais, os arcos do triunfo. Por debaixo da coroa e do manto, acima do mármore e dos tapetes, para além das esculturas e da moldura dos espelhos, há um corpo nu a ser despido que é agora despido para em contrição ser tocado pela cura das imagens sacras. Tudo mais lhe é irrelevante; nada mais relevante do que esse esforço para estar vivo, essa vida em esforço para estar no corpo. Pois há, corpórea e tangível, uma morte a rondar e a rugir com toda ambição e onipotência.

No epicentro do ato, o quase morto: suor a escorrer pela testa exangue, os lábios trêmulos, olhos baços, braços lassos, pele pálida, poros com pus, pústulas, vômitos, cenho cerrado, tórax com úlceras, um fiapo de voz quase inaudível, a boca e o nariz à procura de oxigênio, arfantes. A seu lado, também arfante, não por agonia mas por lascívia, permanece incólume e invisível a morte. Nua, apetitosamente nua, mas na cabeça, uma coroa de madrepérolas e, por sobre o dorso, um manto escarlate, bordado com fios de ouro. E à mão o cetro. Evidencia-se ali a graça da juventude, a volúpia e o requinte de uma rainha absolutista, salubérrima em sua áspera sensualidade: as coxas roliças, os peitos fartos, o olhar de enlevo, a fala felina. Embora de uma velhice milenar, nunca envelhece, predestinada a ser eternamente jovem e viçosa, apolínea discípula de Thanatos. Impassível ante os enfermos fatais, porque imortal e irrepreensivelmente convicta de estar sempre acima do frenesi de todas as coisas e ter sempre a ênfase da última palavra. Por se saber inquestionável, se alimenta de certezas e está certa de que testemunha estertores. E excita-lhe o testemunhar as agruras do agonizante. Saliva intensamente e então molha os dedos em que reluzem anéis e com estes falos se refestela, narcísica, acariciando em sofreguidão o ventre onde se mostra tatuada a herma de Eros. Demonstra a voracidade de uma vampira enquanto contempla as veias evidentes do doente terminal que escarra sangue e grita mas inaudíveis são seus gritos.

Adensa-se o martírio: tosses, convulsões, febres. Há lágrimas inúteis e a inútil evocação do passado que a memória na vã tentativa de se potencializar resgata. Figuras espectrais emergem das cavernas da alma e prenunciam o fim de todas as experiências. Naquele que está prestes a perecer, persiste uma melancolia insuportável quando adquire a consciência de que vai, sim, irremediavelmente morrer e vai, sim, inexoravelmente morrer feito um súdito, com a corporeidade heráldica de um indigente: asfixia nas narinas, ouvidos sem acústica, olhos sem brilho, pulso sem dinâmica.

Morto, já com algodão nas narinas, lhe restituem à cabeça a coroa de madrepérolas e, por sobre o dorso, lhe espalham o manto escarlate, bordado com fios de ouro. Falta-lhe apenas à mão o cetro que agora repousa próximo ao esquife iluminado pelas velas dos castiçais e candelabros. Nada mais lhe é relevante; o todo e todos são tão-somente solenes. Sobretudo a pompa da carruagem em que os cavalos transportam seus despojos até o mármore do mausoléu na catedral. No cortejo de alas de gala formadas em desfile, os súditos reverenciam o cadáver, como se reverenciassem totens. Durante o trajeto, por todos os cantos, os cânticos, o som dos sinos, os incensos, os acenos dos lenços em despedida, os choros, as crispações, as genuflexões e os vassalos todos contritos e tristes em contraste com o rumor sedicioso que parece vir das masmorras.

Entre as damas, as cortesãs que impávidas observam o séquito. Uma delas, a mais curvilínea, traz em mãos algumas camélias e olha de soslaio. Na cabeça, um chapéu de plumas pretas e da mesma cor, a cobrir por inteiro a silhueta, um vestido ornamentado por babados e rendas. A mascarar o rosto, um véu de luto. É aquela dona, a assassina insaciável, a absoluta magna, diva divina a quem nada é relevante. Seu destino: uma predestinação ao êxito. Assiste tudo e a tudo assiste, mas de longe, bem longe do epicentro do rito, ao longe, lá longe, lá bem perto do Arco do Triunfo.

Ricardo Guilherme

Ator, dramaturgo e diretor teatral, com uma teatrografia de mais de duzentos espetáculos realizados. Professor desde 1979 da Universidade Federal do Ceará. Especialista em Comunicação Social e em Arte-Educação. Historiador premiado pelo Ministério da Cultura, nos anos 1970, por seu trabalho de pesquisador. Contista, cronista, poeta, com obra publicada pela Secult, Fundação Cultural de Fortaleza e Fundação Demócrito Rocha. Membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste e da Academia Fortalezense de Letras. Jornalista, radialista integrante da equipe fundadora da TV Educativa do Ceará e da Rádio Universitária. Criador do Museu Cearense de Teatro (1975).

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