Umbanda, Pombagira, Mães de Santo, feminismo e emancipação estão interligados no documentário cearense "Arreda Homem que Chegou Mulher". A trama passeia pelas histórias de Telma, Elisa e Cristina, mulheres de axé-saravá do Estado. Atravessando as tradições de comunidades religiosas, elas ocupam os mais altos cargos de seus terreiros. Dirigido pela jornalista e realizadora audiovisual Renata Monte, o curta-metragem estreia neste sábado, 16, com exibição especial às 16h30min, no Cineteatro São Luiz.
Com entrada gratuita, a sessão única contará com bate-papo entre elenco e produção do filme. O local funciona com seguimento aos protocolos contra a Covid-19, como distanciamento social e uso de máscaras. Na bilheteria, 300 ingressos estarão disponíveis. Este será o primeiro encontro do trio de mães de santo umbandistas Telma Lima, Elisa Ribeiro e Cristina Amorim.
Axé pode ser descrito como uma força vital, uma energia sagrada de uma divindade orixá. Saravá traduz-se numa saudação. "Arreda Homem que Chegou Mulher", título do documentário, também é um ponto de Pombagira, entidade da Umbanda e do Candomblé. Pontos são músicas de rituais. Neste, especificamente, há a demarcação explícita de gênero na manifestação da Pombagira.
O documentário lança convite à compreensão sobre como os terreiros podem ser espaços de formação e emancipação feminina, reúne o cotidiano das mães de santo e suas respectivas relações com a Pombagira. Assim pontua a diretora, Renata Monte. Mãe Telma, Mãe Elisa e Mãe Cristina dirigem seus cultos, governam seus terreiros e representam a força e a autonomia das mulheres de terreiro. Sob a didática da Pombagira, desobedecem para serem livres.
No filme, além dos depoimentos das mães de santo, há as performances de Adna Oliveira, que interpreta uma mãe de santo; e de Yasmin Shirran, que dá vida a uma Pombagira. A produção executiva é de Luana Caiubi, da produtora cultural Peixe-Mulher. Já Camila de Almeida assina a direção de fotografia. No figurino, a artista visual e figurinista Cris Rodrigues. A trilha sonora conta com canções do disco "Filha de Mil Mulheres", de Clau Aniz. Na consultoria, o pesquisador Jean dos Anjos, mestre em Antropologia e referência na articulação entre religião, arte e cultura na Cidade.
"Arreda Homem que Chegou Mulher" tem o apoio da Secretaria Estadual da Cultura do Ceará (Secult/CE), por meio do Fundo Estadual da Cultura, com recursos da Lei Aldir Blanc (Lei Federal 14.017/20). Após o lançamento no Cineteatro São Luiz, a produção deve seguir pelo circuito de festivais Brasil afora.
"Cinema e Umbanda são semelhantes"
“Arreda Homem que Chegou Mulher” é o segundo filme de Renata Monte. A produção sucede o documentário “E tu, tens medo de mim?” (2015), que conta as histórias do coletivo artístico cearense “As Travestidas”. A diretora conversa com O POVO sobre o novo projeto.
O POVO - Como surgiu a ideia do filme?
Renata Monte - Junto a minha entrada na Umbanda, em 2017. Quando pensei em escrever um argumento, foi baseado na história de vida da minha mãe de santo e de como o sacerdócio foi transformador na vida dela, em como exercer um cargo de liderança a fortaleceu em outras áreas da vida. O edital da Aldir Blanc, em 2020, trouxe a possibilidade de realizar o filme. Quando parei pra pensar sobre isso novamente, pensei em pesquisar outras mães de santo com histórico parecido, outras mães de santo que foram transformadas pelo sacerdócio. Falar sobre mulheres na Umbanda é muito importante. De acordo com a União Umbandista dos Cultos Afro-Brasileiros, 80% dos terreiros registrados são governados por mulheres. Ainda assim, quando se trata de visibilidade, autoridade e espaço na mídia, sempre são os pais de santo que estão à frente. Isso acontece desde os registros históricos e o mito da fundação da Umbanda até a literatura e manuais de magia que guiam os estudos nessa área. Há uma enorme discrepância entre homens e mulheres na religião e eu acredito que a Umbanda é também política. Precisamos falar sobre mulheres e sobre Pombagiras sob a perspectiva de mulheres de santo também.
OP - O que mais te chamou atenção nas histórias de Telma, Elisa e Cristina?
Renata - São três mulheres muito diferentes e ao mesmo tempo muito parecidas. Seus terreiros são muito diferentes, suas lidas com a religião são diferentes, os territórios que pertencem são muito diferentes (Curió, Granja Lisboa e Vicente Pinzon), mas era curioso como três mulheres com criações, acesso à estudo e outras possibilidades, podem passar por situações de subjugação tão parecidas, desde as competições com homens no mercado de trabalho até às disputas misóginas dentro de terreiros.
OP - Como você se relaciona com a linguagem do documentário e o que mudou desde o primeiro filme, enquanto realizadora?
Renata - Muita coisa mudou do meu primeiro filme para cá. O primeiro foi um projeto de conclusão da minha graduação em Jornalismo. Então, a minha cabeça e a forma de contar histórias através do audiovisual era de total inexperiência. Não que hoje eu acredite que sou muito experiente (risos). Mas, de 2015 pra cá, todos os trabalhos com produção, roteiro e assistência de direção, principalmente na cultura, me fizeram abrir os olhos para outras possibilidades de cinema, para mistura de linguagens artísticas.
OP - Como se deu a parceria de pesquisa com o Jean dos Anjos?
Renata - Jean é um grande amigo que a Umbanda trouxe para perto e, justamente por todo o seu trabalho enquanto pesquisador, o convidei para fazer parte do filme. Para que, juntos, nós chegássemos a perfis de mães de santo que mostrassem justamente a diversidade na Umbanda. Jean foi essencial nesse processo.
OP - Por que misturar elementos ficcionais, artísticos, com Adna Oliveira e Yasmin Salvador?
Renata - Não queria que o documentário fosse um filme institucional, com entrevistas e mais entrevistas. Queria que a narrativa também fosse construída por outras informações imagéticas, que trouxessem sentido e sentimento pro filme. Adna vem como mãe de santo, surge das águas e Yasmim vem como Pombagira, num encontro bonito entre as duas. Para que isso tivesse ainda mais força, nossa figurinista Cris Rodrigues e o artista de circo Rafael Flores criaram um figurino onde Yasmim pega fogo e foi uma das coisas mais bonitas e mais difíceis de gravar.
OP - Como o cinema pode exaltar as comunidades religiosas diversas, especialmente num momento de tanta intolerância política no País?
Renata - Cinema e Umbanda são movimentos, em essência, semelhantes. Ambos possuem arte e política em seus pilares, são instrumentos pedagógicos de disseminação de ideias. Aproveitar essa janela de transformação social para falar de uma religião de matriz africana, que prega a emancipação de mulheres, é extremamente importante a qualquer momento da história, mas ainda mais essencial agora. É impossível ser umbandista e apoiar o governo do presidente Bolsonaro. É impossível cultuar caboclos e ser favorável a PL 490 (projeto de lei que altera demarcações de terras dos povos indígenas) e o genocídio indígena. Não há como girar com Pretos e Pretas Velhas e ser a favor de um presidente racista. Não há como girar com Exus e Pombagiras e ser a favor de um presidente que abomina as minorias e populações marginalizadas. Para mim, política e religião sempre serão temas a se debater. Fico feliz de poder fazer isso pelo cinema.
Acompanhe: @renatamontex
Estreia "Arreda Homem que Chegou Mulher"
Quando: sábado, 16
Onde: Cineteatro São Luiz (rua Major Facundo, 500 - Centro)
Mais informações: @cineteatrosaoluiz
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