Logo O POVO+
"Toró": como traduzir uma peça de teatro para a internet?
Vida & Arte

"Toró": como traduzir uma peça de teatro para a internet?

Após apresentação cancelada devido à pandemia de Covid-19, espetáculo do CPBT será exibido online no projeto Zona de Criação, do Centro Cultural Porto Dragão
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Fortaleza, Ce, BR - 03.09.21 Gravação em audiovisual do espetáculo Toró no Porto Dragão (Fco Fontenele/O POVO) (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Fortaleza, Ce, BR - 03.09.21 Gravação em audiovisual do espetáculo Toró no Porto Dragão (Fco Fontenele/O POVO)

Dezenove meses de quarentena. Com épocas de maior ou menor abertura, mas dezenove meses de distanciamento social, de normas rígidas ditando que tipo de atividades podem acontecer. Dezenove meses sem cultura e arte presenciais.

No começo da pandemia, alguns nomes da música tiveram a ideia de realizar, de suas próprias casas, pequenas apresentações, de atmosfera intimista, transmitidas ao vivo em suas redes sociais. Nasciam as lives, que, no Brasil, chegaram a se transformar em superproduções milionárias.

Outras linguagens artísticas, porém, tiveram mais dificuldades para mostrar suas realizações. Como montar, por exemplo, exposições de fotografia, pintura ou escultura sem que parecessem apenas slides de imagens? Como capturar emoções da dança, do teatro, sem que fosse apenas uma gravação em vídeo dos espetáculos?

A equipe do espetáculo "Toró", da turma 2019-noite do Curso de Princípios Básicos de Teatro (CPBT), do Theatro José de Alencar (TJA), se deparou com essa e outras dificuldades. A peça foi exibida apenas uma vez: a segunda, que deveria acontecer em março de 2020, foi cancelada horas antes da apresentação, devido às medidas de distanciamento social determinadas pelo Governo do Estado.

Rhaiza Oliveira, que participou como atriz, roteirista e produtora da peça, lembra que houve uma reunião do elenco após o anúncio do cancelamento. “A gente se encontrou em uma grande roda, lamentando o ocorrido”, diz. Ainda não se tinha noção, à época, do tempo que o isolamento social duraria, e a equipe da peça imaginou que, em breve, retomaria a apresentação.

Passado tanto tempo de pandemia, o ânimo para exibir novamente a peça não diminuiu: “segurar essa vontade foi um desafio”, pontua Rhaiza, "mas a gente soube que, quando voltasse, seria incrível. E foi”.

Iuri Cintra, também parte da equipe de "Toró", afirma que o segredo para manter a disposição foi ter um elenco “birrento”. “A gente não se conformou com não apresentar, com não ver acontecer”, afirma ele, completando que foi esse espírito que manteve viva, por um ano e meio, a vontade de apresentar novamente a peça.

Fortaleza, Ce, BR - 03.09.21 Gravação em audiovisual do espetáculo Toró no Porto Dragão (Fco Fontenele/O POVO)
Foto: FCO FONTENELE
Fortaleza, Ce, BR - 03.09.21 Gravação em audiovisual do espetáculo Toró no Porto Dragão (Fco Fontenele/O POVO)

Na metade de 2021, o elenco se reuniu com um propósito ambicioso: traduzir a peça para o audiovisual. Contemplado no projeto Zona de Criação, do Centro Cultural Porto Dragão, "Toró" foi modificado para abarcar as mudanças de linguagem, e o espetáculo foi gravado no começo de setembro.

Segundo Helena Barbosa, gestora executiva do Porto Dragão, o Zona de Criação tem funcionado para “conectar artistas, técnicos, assessores, gestores e produtores”, na elaboração dos episódios. Com isso, as equipes de produção do espetáculo e do centro cultural se uniram a um time de filmagem, resultando na obra que estreia neste sábado, 23, às 18 horas.

Para Helena, o Zona de Criação ajuda a criar “condições de criação e produção para agentes culturais”, grupo severamente afetado pela pandemia, e que funciona como “troca de tecnologias, inventividade, tempos e conhecimentos”. Até o momento, mais de 30 artistas e grupos foram contemplados nos episódios do programa.

O POVO acompanhou o processo de montagem física e gravação de "Toró", confira abaixo o relato.

Sobre o espetáculo "Toró"

Idealizado pela turma 2019 - Noite do CPBT, a peça "Toró" conta a história de uma cidade que, antes próspera e banhada por rios e chuva, atravessa um período de seca. O espetáculo fala dos desafios da população local, que precisa lidar com divisões sociais escancaradas e a luta por manutenção de identidade e ancestralidade.


Sobre o programa Zona de Criação:

Idealizado e produzido pelo Porto Dragão desde 2020, o programa fomenta a produção de conteúdo audiovisual gerando programação cultural de qualidade, além da criação de portfólios dos artistas. Com mais de 20 episódios artísticos publicados, está na segunda temporada, contando com percursos formativos durante a parceria entre os artistas e o equipamento cultural, e contando com interpretação em Libras, apresentando diversas linguagens em co-criação com o audiovisual.


Dia 1: montagem e pré-produção

No primeiro dia do projeto foram feitas duas etapas de pré-produção. Este momento envolve profissionais de maquiagem, figurino, atores, e a equipe de produção, tanto do local onde é a apresentação quanto do espetáculo em si. Em "Toró", especificamente, muitas destas tarefas foram realizadas pelo próprio elenco.

Na apresentação ao vivo, parte musical e sonoplastia foram feitas no próprio palco. Para a transmissão, haverá reforço nas músicas e efeitos sonoros: os atores fizeram os números durante a gravação, mas houve uso de estúdio para reforçar o som. Os efeitos sonoros e a música foram gravados na Casa da Vovó Dedé, na manhã do primeiro dia do processo. Também houve, neste momento, a montagem de palco e luz.

A primeira apresentação do espetáculo foi feita, como todas as peças de conclusão do CPBT, no palco principal do TJA. Para a gravação, a realização foi no teatro do Porto Dragão. A diferença nas estruturas dos locais implica em uma série de alterações necessárias na parte física da montagem. O tamanho do palco, por exemplo, que determina as marcações dos atores, é totalmente distinto.

A luz no teatro varia de acordo com diversos fatores: tamanho do local, empresa contratada para realizar a iluminação etc. Aqui havia, também, a mudança da apresentação ao vivo para a gravada. Toda a parte de iluminação teve que ser repensada em dois aspectos: o palco diferente e, em vez de plateia, câmeras. A maquiagem também precisou ser revista, para se adequar às mudanças na iluminação.

Este processo tomou um tempo considerável. A estrutura de luz foi montada no primeiro dia, em paralelo às gravações sonoras. Já passando das 19 horas, começou o estudo de iluminação, com elenco e produção debatendo as cores mais adequadas para cada cena. A conclusão desta etapa só aconteceria no último dia, com estudo de maquiagem e chegada das câmeras.

Dia 2: ensaios e adaptações

Quando cheguei, a produção já seguia em ritmo acelerado. Alguns testes de maquiagem aconteceram de manhã, e a equipe de filmagem estava a postos: ainda sem gravação, o ensaio final serviu como estudo de posicionamento das câmeras.

Ambos os passos são interligados, o que faz o ensaio diferente do habitual: Além das pausas da diretora, para orientar o elenco, a equipe de filmagem precisa acompanhar as passagens de cena e debater posicionamentos de câmera.

O processo gera um híbrido entre teatro e cinema. Enquanto o primeiro pressupõe um mesmo local para a plateia, estático durante toda a apresentação, o segundo é pensado desde o princípio com o posicionamento das câmeras. O resultado é interessante e traz, além do misto das linguagens, algo novo, próprio.

O próprio roteiro precisou ser refeito: Iuri Cintra, que foi um dos escritores, diz que foram repensadas “todas as cenas, todas as falas”. Rhaiza Oliveira, também da equipe de redação, pontua que o Porto Dragão contribuiu com consultoria para adaptar o texto. Ela destaca, porém, que a essência da história não apenas foi mantida, mas também se sobressaiu, mesmo com a mudança de linguagem. Iuri concorda: “como um todo, ainda é muito teatral”, afirma.

Não que a prática de filmar peças de teatro seja nova: qualquer pessoa que tenha vivido os anos 1990 lembra de ter assistido, nas noites de domingo, ao "Sai de Baixo", sitcom que era gravada do palco do Procópio Ferreira, em São Paulo. Havia, inclusive, presença de público, que por vezes interagia com o elenco.

Aqui, porém, há diferenças cruciais: "Sai de Baixo" tinha limitações próprias, do formato televisivo e da estrutura, pois era necessário abarcar tanto a filmagem quanto o público no mesmo ambiente. Era algo mais que apenas um teatro filmado, mas era também um teatro filmado.

No caso de "Toró", e de algumas outras peças de teatro transformadas em audiovisual nos últimos meses, vai-se além disso: o teatro traduzido em filme é mais que teatro e mais que filme. E a palavra-chave é essa: tradução. É necessário compreender que há diferenças entre as linguagens artísticas, o que demanda adaptações.

Acompanhar este processo me lembrou uma entrevista que fiz com professores da Universidade Federal do Ceará (UFC) especializados em videodança. Muitas das pontuações que eles me fizeram à época, sobre como a modalidade juntava dança e audiovisual para construir um terceiro tipo de arte, também se mostram verdadeiras aqui.

Neidinha Castelo Branco, diretora do espetáculo e professora da turma do CPBT que criou "Toró", qualifica o processo de adaptar a peça ao audiovisual como “ousado”. “Ousar é preciso”, completa. Ela destaca que o trabalho, como todas as montagens oriundas do curso, foi coletivo, e que a tradução do espetáculo dos palcos para as telas não foi diferente.

Dia 3: gravação

Com todos os detalhes definidos, passa-se à gravação. Após ter acompanhado o ensaio do segundo dia, a equipe de filmagem já tinha definido o posicionamento de câmeras e ajustes de luz para fazer na pós-produção.

Para o elenco, uma experiência diferente do "é agora" que acontece na hora de apresentar uma peça. Em vez do ponto sem retorno quando abrem-se as cortinas, há diversas pausas, para garantir que as tomadas captem da melhor forma possível a energia de cada cena.

Para quem se acostumou ao teatro, é algo parecido com um ensaio. Na filmagem, lembra muito o cinema tradicional, com takes e adaptações. O processo é cansativo. Entre interrupções e tomadas, o elenco ficou cerca de cinco horas gravando uma peça que, originalmente, dura menos de 60 minutos.

Outra questão é a chamada “energia da plateia”, tão mencionada por profissionais das artes cênicas. Embora acredite que as produções online continuarão, Neidinha Castelo Branco afirma que “o teatro precisa da presença do público para acontecer em plenitude”. Na gravação, porém, somente quem assiste são a equipe técnica e a parte do elenco que não está em cena.

Aqui, pode-se dizer que há um conflito entre os formatos: parte do que se conhece por "teatralidade", as especificidades da linguagem teatral, se deve à intensidade da atuação - e a presença do público é parte disso, devolvendo ao elenco a energia que recebe. No cinema, esse processo é compensado pelas pausas entre cada tomada. Traduzir uma peça em audiovisual gera "o pior dos dois mundos": a força da atuação teatral, sem o feedback da plateia, e com a necessidade de repetição do audiovisual.

Não à toa, o elenco estava exausto ao fim do processo. Ainda assim, havia a felicidade de ter levado ao mundo, novamente, uma produção que, como preza a formação do CPBT, foi feita de forma coletiva.

Toró: ficha técnica

Curso de Princípios Básicos de Teatro - CPBT
Turma 2019 - Noite
Elenco: Brenda Louise, Caio Vitor, Camilla Delamônica, Flávia Joseph, Geraldo Rocha, Humberto Torres, Ian Melo, Iago Guerreiro, Iuri Cintra, Izabele Feijó, Karine Viana, Klissia, Manu Augusto, Marcella Medeiros, Rafaella Carneiro, Rebeca Azevedo, Rhaiza Oliveira, Samuel Gomeni, Tesllyn e Yara Canta
Direção: Neidinha Castelo Branco
Dramaturgia: Turma CPBT 2019 Noite
Roteiro Adaptado: Iuri Cintra, Rhaiza Oliveira e Yara Canta
Preparação de Elenco: Isabel Azevedo, Neidinha Castelo Branco, Pâmela Canário, Rodrigo Salviano e Rosana Reis
Figurino: Brenda Louise e Yara Canta
Sonoplastia: Caio Vítor, Iuri Cintra e Lucas Jackson
Músicas: Canção Da Correnteza (Caio Vitor) e Memória Viva (Iuri Cintra)
Cabelo: Isabelle Galeazzi
Maquiagem: Izabele Feijó, Karine Viana, Klissia, Manu Augusto e Rafaella Carneiro
Projeto Gráfico, Vídeo e Fotografia: Tim Oliveira
Produção: Turma CPBT 2019 Noite
Coordenação de Produção: Camilla Delamônica, Iuri Cintra, Rhaiza Oliveira e Yara Canta
Agradecimento: Casa da Vovó Dedé

Toró

Quando: estreia hoje, às 18h

Onde: canal do YouTube do Porto Dragão

 

O que você achou desse conteúdo?