Antes de gravar um novo disco, é comum que Caetano Veloso pegue um papel e escreva ideias. Não ideias de letras ou arranjos. Ideias que expressem o que anda incomodando, chamando atenção, surpreendendo a ele naquele momento. É uma forma de encontrar unidade e sentido ao que vai ser registrado no estúdio. Algumas dessas cartas acabam ganhando o mundo, como é o caso do texto que apresenta “Meu coco”, disco que ele lançou na noite da última quinta-feira, 21.
E essa carta começa refletindo sobre para que ele ainda gravaria um novo disco. “Muitas vezes sinto que já fiz canções demais. Falta de rigor? Negligência crítica? Deve ser”, questiona o compositor que, aos 79 anos, mais de 50 deles dedicados à música, acumula 23 discos solo de músicas inéditas. A essa marca, acrescente mais de uma dezena de registros ao vivo, projetos divididos com parceiros como Jorge Mautner, Gilberto Gil, David Byrne e Gal Costa, e uma infinidade de participações nos mais diversos discos do mundo.
Ainda assim, em 2019 surgiu o desejo de gravar novidades de autoria própria. E a primeira dessa lavra foi “Meu coco”, em cuja batida Caetano viu algo de novo. Na letra, ele discute as sonoridades dos nomes femininos a partir de influências várias e embala a questão num arranjo cheio de sopros, percussões e climas. “Minha esperança era achar os timbres certos para fazer desse riff sonhado uma novidade concreta. E eu tinha a certeza de que a batida, seu som e sua função só se formatariam definitivamente se dançarinos do Balé Folclórico da Bahia criassem gestos sobre o que estava esboçado no violão”, escreveu Caetano, que teve seu plano interrompido pela chegada da pandemia.
Se não é um disco influenciado ou sobre a pandemia, certamente “Meu coco” foi impulsionado pela situação sanitária mundial. Sem turnês, Caetano foi compondo e gravando em seu estúdio caseiro, no Rio de Janeiro, ao lado do produtor Lucas Nunes. O título do álbum remete à sua terra natal e ao “coqueiro que dá coco”, assim como se refere a um ritmo tradicional nordestino e à cabeça, que alguns chamam de “coco”. E nada passou mais pela cabeça do compositor nos últimos meses do que Benjamim, filho de Tom Veloso. Para o neto, Caetano compôs “Autoacalanto” com a mesma doçura que tem demonstrado em tantos posts no Instagram. Igualmente tocante é “Noite de Cristal”, que ele fez para Maria Bethânia gravar em 1988. Décadas depois, foi a vez dela sugerir que o irmão desse sua leitura da composição.
“Enzo Gabriel” é uma espécie de irmã (ou península, como define Caetano) de “Meu coco”. A faixa foi batizada com o nome que mais foi usado no registro de recém-nascidos brasileiros nos anos 2018 e 2019. “Enzo Gabriel, qual será teu papel na salvação do mundo?”, questiona ele a todos os batizados com tal nome. E segue: “sei que a luz é sutil, mas já verás o que é nasceres no Brasil”. Por falar em Brasil, “Não vou deixar” não á nada sutil. “Não vou deixar você esculachar com a nossa história. É muito amor, é muita luta, é muito gozo, é muita dor, é muita glória”, diz a letra que ele define como “rejeição da opressão política escrita em tom de conversa amorosa”.
O primeiro single de “Meu Coco” foi “Anjos Tronchos”, lançado no mês passado. A faixa fala sobre o mundo guiado por algoritmos. A letra ágil e sólida como uma pedrada traz versos como “agora a minha história é um denso algoritmo que vende venda a vendedores reais” e “Palhaços líderes brotaram macabros no império e nos seus vastos quintais”. Mas Caetano não parece se guiar pelos números exatos nem pelas regras dos streamings. Num disco cuja sonoridade cruza a fase Banda Cê com a estética do disco “Livro” (1997), Caetano comenta a hereditariedade da música negra (“GilGal”) e cita de Nego do Borel até os Tincoãs, grupo vocal baiano formado nos anos 1960. Tem ainda o amor e cor da pele (“Cobre”), um fado dividido com Carminho (“Você-você”) e aquele samba bem novela das 8h (“Sem samba não dá”). Tudo aquilo que circula no coco privilegiado de Caetano.
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Faixa-a-faixa
Confira trechos do texto de apresentação de "Meu coco", assinado por Caetano Veloso:
1. Meu coco - "Tudo partiu de uma batida no violão que me pareceu esboçar algo que (se eu realizasse como sonhava) soaria original a qualquer ouvido em qualquer lugar do mundo. "Meu Coco", a canção, nasceu disso"
2. Ciclâmen do Líbano - "com fraseado do médio-oriente salpicado de Webern"
3. Anjos tronchos - "Canção reflexiva que trata da onda tecnológica que nos deu laptops, smartphones e a internet, me faz prometer-me ler mais sobre o assunto"
4. Não vou deixar - "Com célula de base de rap criada no piano por Lucas e letra de rejeição da opressão política escrita em tom de conversa amorosa"
5. Autoacalanto - "Retrato de meu neto que agora tem um ano de idade"
6. Enzo Gabriel - "Seu tema (seu título) é o nome mais escolhido para registrar recém-nascidos brasileiros nos anos 2018 e 2019"
7. GilGal - "Devo a intensa beleza da faixa 'GilGal' a meu filho Moreno: ele fez a batida de candomblé para eu pôr melodia e letra que já se esboçava mas que só ganhou forma sobre a percussão"
8. Cobre - "Canção de amor romântico, fala da cor da pele que compete com o reflexo do sol no mar do fim de tarde do Porto da Barra"
9. Pardo - "Título já sugere observação do uso das palavras na discussão de hoje da questão racial, teve arranjo de Letieres Leite, baiano"
10. Você-Você - "Uma discussão sobre o (não) uso da palavra 'você' pela brilhante jovem fadista Carminho virou o fado midatlântico"
11. Sem samba não dá - "Soa à Pretinho da Serrinha: uma base de samba tocada por quem sabe - e a sanfona de Mestrinho, que comenta as fusões de música sertaneja com samba tradicional"
12. Noite de cristal - Sobre a última faixa, Caetano comentou no Twitter: "A canção 'Noite de Cristal', que Maria Bethânia me pediu para cantar na #LivedoCaetanodeNatal, diz o que eu queria dizer nesse momento de fim de ano para vocês"
Caetano Veloso - Meu Coco
Produção Caetano e Lucas Nunes
Participações de Dora Morelembaum, Letieres Leite, Carminho e outros
Sony Music
12 faixas
Disponível nas plataformas digitais