"O marinheiro das montanhas", o mais recente filme de documentário dirigido pelo realizador cearense Karim Aïnouz - que estreou mundialmente no festival de Cannes e faz parte da seleção da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo -, começa com uma cartela que apresenta a etimologia da palavra "calentura". O termo, que parece ter surgido nos dicionários em meados do século XVI, remete a um estado de espírito febril que acomete os marinheiros quando chegam próximos aos trópicos do globo. Cercados pelo alto mar, que consome toda a extensão da paisagem ao redor, há relatos de que os homens acometidos pela calentura enxergam largos campos verdes que os convidam a saltar dos seus barcos. "Lá eles imaginam haver, em meio as ondas que quebram, árvores, florestas e prados adornados em flores", diz o texto.
Karim sugere ao espectador a imagem mental da calentura para dar pontapé à sua própria jornada de navio rumo à Argélia, seu país de origem paterna, na intenção de escavar segredos tanto sobre este país desconhecido no qual nunca esteve antes, como para tentar compreender um pouco mais sobre a história do pai que só pôde conhecer pessoalmente aos 18 anos. Chama atenção, contudo, que quanto mais fundo o realizador se adentra nos aspectos culturais, demográficos e históricos da Argélia, mais distante ele parece ficar da figura do próprio pai, que atravessa a narrativa como uma ausência que é sentida pelo espectador tal como Karim deve ter experimentado ao ser criado pela mãe, avó e tias.
Na verdade, como num texto epistolar, Karim, que empresta a sua voz à narração do documentário, dirige a palavra sempre à sua mãe, Iracema, narrando com detalhes os seus dias em Argel e na região montanhosa da Cabília. Seguindo uma estrutura de filme ensaio, o realizador põe em cena imagens que dão conta da arquitetura das cidades e vilas argelinas, colocando o corpo dos transeuntes com os quais se esbarra ao acaso também como uma paisagem a ser percorrida, que servem como gatilhos para histórias que remontam o período da revolução e falam de tempos de conflito, esperança e liberdade.
Na tentativa de recobrar o espaço e o tempo no qual se deu o romance vivido entre sua mãe e o seu pai, ainda nos anos 1960, o realizador restitui uma série de imagens de arquivo que vão desde filmes em super 8, em vídeo, até fotografias estáticas, e por mais que o gesto da viagem de Karim se dê em direção a descoberta do mistério que é a sua origem paterna e a região montanhosa da Argélia, a sua mãe Iracema parece ter um protagonismo que rouba a cena mesmo quando não é citada diretamente na narração.
Narrado em primeira pessoa, "O marinheiro das montanhas" serve também como um diário de viagem que remete instantaneamente a "Viajo porque preciso, volto porque te amo", longa de Karim co-dirigido por Marcelo Gomes; mas a presença feminina, tão forte na criação do diretor, também parece ter relação direta com "Seams", curta-metragem de Aïnouz realizado no início dos anos 1990, que articula arquivo familiar com imagens do contexto político brasileiro à época.
As relações entre Argel, a Cabília e Fortaleza se estreitam à medida que a narrativa avança, e vão para além da costa do mar Mediterrâneo e da praia de Iracema, no Atlântico. A paisagem humana da Argélia, com efeito, rende alguns encontros e diálogos marcantes com personagens absolutamente peculiares, como quando Karim encontra fortuitamente com o seu tio-avô, que o apresenta a vila onde o seu pai nasceu, introduzindo-o também à porção desconhecida da família, incluindo Inês, uma prima de terceiro grau que fascina pelo magnetismo que imprime no olhar e na palavra.
"O marinheiro das montanhas" funciona, assim, como um diário que tenta dar conta da macro história de um país e de uma geração a partir da micro história de uma família, e é particularmente feliz na forma como articula imagens de formatos e suportes tão distintos numa montagem cujo ritmo e cadência retém a atenção do espectador para um porvir que é sempre misterioso, como a calentura que acomete o espírito do marinheiro que se lança ao mar. Ao final da projeção, pensei que, a exemplo de vários outros trabalhos de Karim Aïnouz, esse é um filme sobre partida na mesma medida que é um filme sobre retorno.
Pedro Azevedo é crítico e curador do Cinema do Dragão
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