Na música "As Canções Que Você Fez Para Mim", composta por Erasmo Carlos e por Roberto Carlos, a versão eternizada de Maria Bethânia entoa: "É tão difícil olhar o mundo e ver o que ainda existe / Pois sem você meu mundo é diferente / Minha alegria é triste". A partir deste fim de semana, esses versos terão seus sentidos expandidos para múltiplas telas e linguagens: estreia hoje, 13, o documentário "Minha Alegria É Triste". Unindo elementos do teatro e do cinema, a experiência híbrida entre ficção e realidade apresenta histórias de resistências, dramas e reinvenções de palhaços durante a pandemia. A produção tem interpretação em libras e será exibida gratuitamente.
Com direção e roteiro de Fábio Limah, a obra reúne as vivências dos artistas da palhaçaria Kevin Braga (Dois de Paus), Ajota Takashi (Mysterio), Juh Silva (Juluka), Paula Barros (Nanna Chorona), Patrícia Zulu (Lilica Trícia Tritri), Taís Sawaki (Magy) e Yure Lee (Manon). Aprovado em agosto no Prêmio de Experimentação Artística Vicente Salles 2021, da Fundação Cultural do Pará, o projeto reúne duas ramificações, sendo a primeira o longa-metragem e a segunda uma minissérie que será veiculada em 2022 apresentando o processo de produção da obra.
Dividido em seis atos, o documentário apresenta as vivências atuais de seus participantes e as memórias trazidas de um passado recente, em 2020. O enfrentamento dos artistas diante do "desmonte da cultura no País" é abordado a partir de diferentes elementos, como uma cenografia "minimalista" que retrata a casa de Dois de Paus "com seus potes de comida vazios", olhares desesperançosos e falas "emocionadas de resistência" dos palhaços para garantir "o sustento e a saúde mental nesse período".
O desenvolvimento do filme, entretanto, mostra que, na obra, "nem tudo são prantos". Mesmo diante de um cenário tão complexo, o trabalho apresenta "alentos e afagos" na alma por meio dos palhaços envolvidos. O detalhe é enfatizado por Fábio Limah: "Há uma crescente emocional no roteiro em cada ato e, intencionalmente, se buscou ressaltar essa alegria, teoricamente inerente às pessoas que desenvolvem a persona de palhaço/palhaça, em alguns momentos até para realizar o contraponto com suas dores".
A estreia do filme vem após muitas dificuldades com o orçamento previsto para a realização da obra. Com o empenho de toda a equipe, porém, foi possível contornar a situação. A convivência, aliás, teve efeitos não só na construção do documentário, mas também no bem-estar de quem estava envolvido nos processos.
"Estar no set com essa equipe fez com que, durante os cinco dias em que passamos juntos/as, eu não sentisse vontade de chorar, e não chorei. Me emocionei muito todos os dias, mas não chorei de tristeza como nos dias anteriores", relata.
Para Fábio, desenvolver o projeto ajudou a resgatar o sentimento de força da vida e a sair "de um estado isolado": "Essa experiência do 'Minha Alegria É Triste' veio para me arrancar de um estado isolado, me fazer atravessar o País para fazer o que sustenta minha alma neste mundo, fazer arte, conhecer pessoas incríveis e reencontrar pessoas amadas".
Protagonista do "docudrama", o palhaço Dois de Paus é interpretado por Kevin Braga. A relação entre os dois é de identificação: segundo Kevin, o palhaço "captura toda a sua existência". Além de suas cenas serem inspiradas nas vivências de Kevin, as roupas usadas pelo palhaço carregam as marcas da infância do artista. No filme, as experiências atravessadas desde o início da pandemia são destacadas.
"A primeira coisa em que eu pensei foi em transformar todas as minhas desventuras, tristezas, inseguranças e dores em cenas de palhaço. Busquei ver tudo aquilo que eu estava vivendo com um outro olhar, mais humilde, simples e cômico, que é olhar do meu palhaço", relata Braga.
Nesse período, o ator conversou sobre o que estava passando com outros amigos - entre eles Fábio Limah. Kevin relata que foi bastante difícil se manter financeiramente diante do cancelamento de trabalhos devido à disseminação do coronavírus no País. O filme acabou sendo, então, uma consequência dessa troca de experiências.
Com trabalhos na palhaçaria e no teatro paralisados, Kevin recorreu a alternativas para conseguir uma fonte de renda. O artista começou a buscar editais para inscrever projetos, a ir atrás de trabalhos como designer gráfico - sua outra expertise - e até fez curso de formação em ópera. "Eu juntava todos esses trabalhos para conseguir me manter e também focar em algo que não fosse a tragédia que estávamos vivendo", afirma.
O ator não foi o único a se "reinventar" para conseguir sobreviver na pandemia. Ele chegou a ver colegas de profissão desistirem da carreira e buscar outras formas de renda. As dificuldades financeiras enfrentadas por Kevin o levaram a conviver, em um momento, com uma triste situação: a fome.
"Teve um momento na pandemia que eu estava sem grana. Não entrava nenhum trabalho. Eu passei quase um mês só comendo banana e farinha. Foi muito difícil. No início, eu achava que ia morrer de Covid-19, pois tenho problemas respiratórios, mas quando chegou esse período eu pensei que minha morte não seria pela Covid-19, mas pela fome", revela. Felizmente, Kevin pôde contar com sua família e seus amigos para resistir.
O documentário acabou funcionando também como um espaço de acolhimento. Feliz por fazer parte desse projeto, o artista crê que o compartilhamento de histórias de outros palhaços no filme consegue "dar voz às pessoas que viveram isso de fato". Assim, aponta que a obra servirá como um "documental real" desse período e que ela "gritará" a resistência de cada um.
"Minha Alegria É Triste" também reúne a participação de Patrícia Zulu, que dá vida à palhaça Lilica Tricia Tri Tri. A atriz carrega consigo o coração de Lilica - "o maior do mundo" - há mais de 15 anos, levando alegria e animação para eventos sociais, infantis e ações promocionais em Belém e no Interior do Pará.
A pandemia desencadeou também em Patrícia preocupações e inseguranças. A artista relata como ficou "fora do eixo" com esse cenário e como acabou sofrendo com crises de ansiedade. Ela chegou a perder parentes devido à doença e ficou emocionalmente abalada. "Enquanto palhaça e principalmente com ser humano, foi terrível enfrentar a pandemia, mexeu muito com meu psicológico", acrescenta.
Além disso, o seu trabalho com animação - realizado pela última vez em janeiro de 2020 - foi bastante prejudicado: "Eu simplesmente não podia trabalhar. Claro que eu entendo todas as medidas necessárias que foram adotadas para a nossa segurança. Mas, para mim, que sou autônoma e profissional da área artística, foi terrível e apavorante perder a fonte de sustento".
Uma das consequências da impossibilidade de realizar seu trabalho artístico foi a necessidade de buscar alternativas para resistir financeiramente à pandemia. Com sua mãe, Patrícia passou a fabricar máscaras de tecidos para vendê-las e também criou um bazar virtual. O "Bazar da Zullu", mesmo com poucas vendas, continua sendo até hoje uma fonte de renda para a atriz.
No presente, Patrícia espera "estabilidade" quanto à retomada gradual de apresentações culturais, reforçando que, para isso, é necessário continuar "atento aos protocolos de segurança e saúde" e seguir com a vacinação contra a Covid-19. Para o futuro, o desejo é de "valorização":
"Eu quero mais atenção para os artistas. Fazemos parte de uma classe trabalhadora importante, levamos diversão e entretenimento e carregamos uma bagagem cultural muito relevante, que conta nossa história como seres humanos. Precisamos ser valorizados".
Minha Alegria É Triste
Quando: hoje, 13, e amanhã, 14; 20 e 21; 27 e 28 de novembro, sempre às 20 horas
Onde: Minha Alegria É Triste no YouTube
Mais info: @minhaalegriaetristedoc no Instagram
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