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Mostra Sesc Cariri: encontro cultural une tradição e contemporaneidade
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Mostra Sesc Cariri: encontro cultural une tradição e contemporaneidade

23ª edição da Mostra Sesc Cariri de Culturas adota formato híbrido e possibilita encontro geracional
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Consolidada como um dos maiores encontros culturais do País, a 23ª edição da Mostra Sesc Cariri de Culturas apresentou programações diversas, presenciais e on-line, entre 7 e 14 de novembro de 2021 (Foto: Davi Pinheiro/ Divulgação)
Foto: Davi Pinheiro/ Divulgação Consolidada como um dos maiores encontros culturais do País, a 23ª edição da Mostra Sesc Cariri de Culturas apresentou programações diversas, presenciais e on-line, entre 7 e 14 de novembro de 2021

No Cariri, as paredes dos casarões são pintadas com cores sólidas: amarelo fremente, branco puro feito cal e azul — aquele azul profundo, azul de paz, azul de oração, emprestado do céu. O escritor Milton Dias (1919- 1982), olhos perdidos no firmamento, versou: "Esta cor é exclusiva do Ceará, feita duma tinta que só o Senhor reserva só para nós, tão especial e ao mesmo tempo tão surpreendente, que parece sempre inédita”. Nas salas conjugadas das residências menores, compridas, o Sagrado Coração dependurado e a água do filtro de barro oferecem generosas boas-vindas aos que se achegam no Cratim de Açúcar. Pai-nosso, ave-maria, credo e cruz, o cheiro de café torrado me recebeu em Juazeiro do Norte numa manhã chuvosa. Sob as bênçãos de Padre Cícero, as ruas se encheram de cores durante a 23ª edição da Mostra Sesc Cariri de Culturas.

Nas palavras de Guimarães Rosa, tomando cá para minhas veredas pelo sul do Ceará, o Cariri "me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca". Dois pés fincados na cidade grande, o peito zabumbou ante a Chapada do Araripe — um verde tão bonito e tão absurdo que meu vocabulário não sabe bem precisar. Entre os dias 7 e 14 de novembro, a Mostra Sesc Cariri de Culturas enfeitou as cidades de Brejo Santo, Iguatu, Nova Olinda, Crato e Juazeiro do Norte com programações em múltiplas linguagens: música, artes visuais, literatura, artes cênicas, tradição, audiovisual e patrimônio. O evento reuniu mais de 800 artistas em 160 atrações, cerca de 5.300 pessoas nas atividades presenciais e quase 30 mil espectadores on-line.

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Se me fosse confiada a ingrata tarefa de escolher um vocábulo para traduzir a Mostra Sesc de 2021, eu apostaria em "possibilidade". Consolidado como um dos maiores encontros culturais do País, o evento adotou o formato híbrido neste ano em decorrência da pandemia de Covid-19 e tornou possível, mesmo a um sem fim de distância, tocar com as pontas dos dedos os saberes dos mestres e mestras da cultura encantados. A websérie "Mestres Guardiões da Memória", gravada em locais históricos da região e exibida em 10 episódios, partilhou ao público as trajetórias dos tesouros vivos de nossa terra. Nas ruas, nos palcos e nas cadeiras repousando em calçadas, as máscaras, o distanciamento seguro e as vacinas — não nos esqueçamos jamais — forjam um novo convívio com o outro.

Por sorte, não preciso reduzir esses sete dias em uma palavra. Escrevo no ônibus a caminho de Fortaleza, entre Várzea Alegre e Iguatu, caçando jeito de aquietar o rebuliço numa página de jornal. O Cariri é feito pavão misterioso: nos feitiços subterrâneos das vidas, severinas e de viés, os saberes dos encantados correm velozes feito sangue nas veias e atravessam gerações. Pisar nessa terra sagrada é comunhão entre ontem e amanhã, presente suspenso em mistério. Na última quinta, 11, conheci o Museu Orgânico de Mestre Nena e enchi os olhos com fitas e adornos coloridos das vestes de palhaço Mateu, rei, rainha, contramestre, guerreiros, capitão, embaixadores, príncipe, princesa... Nascido no Crato, o menino Francisco Gomes Novaes começou a brincar no reisado de congo do Mestre Móises Ricardo ainda aos 12 anos. Hoje, aos 70, Mestre Nena comanda o Bacamarteiros da Paz em Juazeiro do Norte.

Os Museus Orgânicos celebram as tradições e histórias de personagens como a foto-pintora e fotógrafa Telma Saraiva, precursora na arte da fotografia pintada à mão desde a década de 1940 no Crato. Inaugurado dentro da programação da Mostra no sábado, 13, o Museu Orgânico Casa de Telma Saraiva é o primeiro a realizar uma homenagem póstuma a uma personalidade cearense. Numa visita guiada pela filha de Telma, a artista visual Edilma Saraiva, conhecemos a vida de uma mulher que era muitas, apaixonada por cinema e tintas, mas sobretudo compromissada com suas raízes.

Entre as tardes preguicentas e longas, de interminável calor, creio que compreendi o que manteve Telma Saraiva no Crato do nascimento à morte — mesmo encantada pelas divas de Hollywood, não cabendo mais em cidade nenhuma. A caminho das programações da Mostra, eu me perdi um par de vezes no Centro de Juazeiro, entre casas com portões de madeira e ferro e estátuas do Padim em cada estabelecimento comercial. Nas errâncias, me demorei nas praças, senti nos pés a força de um povo que costura o hoje com as linhas dos ancestrais. Como o músico pernambucano Bardo cantou no Teatro Sesc Patativa do Assaré, "o futuro já sabia". 

(A repórter viajou ao Cariri a convite do Sesc Ceará)

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