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Shang-Chi: a fórmula da representatividade que não convenceu a China
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Shang-Chi: a fórmula da representatividade que não convenceu a China

"Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis" traz dois diferentes pedidos de desculpas por parte da Marvel, mas nada disso convenceu o maior mercado de filmes do mundo: a China
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'Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis' estreia no Disney Plus para todos os assinantes (Foto: Divulgação/ Marvel)
Foto: Divulgação/ Marvel 'Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis' estreia no Disney Plus para todos os assinantes

"Shang-Chi", o primeiro filme da Marvel a trazer um protagonista asiático, teve estreia nos cinemas brasileiros no dia 2 de setembro deste ano, mas só no dia 12 de novembro, 70 dias depois, a obra foi lançada na plataforma Disney Plus. E essa demora é reflexo muito mais de uma situação política complicada entre o streaming e o governo chinês do que necessariamente burocracia.

Criado por Steve Englehart e Jim Starlin, "Shang-Chi" é um super-herói do universo Marvel, especialista em artes marciais, que apareceu pela primeira vez em 1973 nos quadrinhos. Ele foi inspirado nas produções de Kung Fu e artes marciais que eram populares na década de 1970 — especialmente os filmes de Bruce Lee, como "Operação Dragão e A Fúria do Dragão".

Shang-Chi (Simu Liu) é filho de Xu Wenwu (Tony Leung), conhecido nos quadrinhos — e, teoricamente, no filme "Homem de Ferro 3" — como Mandarim. No filme, Shang foi criado em uma antiga fortaleza escondida na China, onde aprendeu artes marciais e disciplinas filosóficas. Após a morte de sua mãe, ele entende o propósito da organização criminosa que o pai lidera, chamada Dez Anéis, e foge para os Estados Unidos.

Kevin Feige, presidente da Marvel Studios, disse que o filme conta com 98% do elenco asiático, o que é um fator importante para a representatividade na Marvel. Segundo ele, os fãs da Marvel sentem a mesma sensação de pertencimento causada por "Pantera Negra" (2018), que trouxe Chadwick Boseman como protagonista e foi importante na representatividade negra dentro do cinema de super-heróis.

No documentário "Avante" (2021), da Disney Plus, o ator que dá vida a Shang-Chi, o sino-canadense Simu Liu, admitiu que, quando era criança, fantasiava-se no Halloween de heróis que fossem mascarados, por simplesmente não existir, à época, representatividade asiática. De fato, as crianças cresceram com muitos dos heróis sendo brancos, cis e estadunidenses. E assim como teve grande importância de representatividade racial o longa Pantera Negra (2018), Shang-Chi vem dar voz a uma parcela significativa do mercado consumidor da indústria cinematográfica.

Vale lembrar que os Dez Anéis foram apresentados brevemente como uma rede terrorista internacional no primeiro "Homem de Ferro" (2008), onde colaborou com Obadiah Stane (Jeff Bridges) para sequestrar Tony Stark (Robert Downey Jr.) — posteriormente também aparece em "Homem-Formiga" (2015). O Mandarim apareceu em "Homem de Ferro 3" (2013), porém, tudo não passou trapaça usada por Aldrich Killian (Guy Pearce, um ator australiano notoriamente branco) para enganar o mundo, se aproveitando do ator Trevor Slattery (Sir Ben Kingsley, um ator britânico de ascendência indiana e russo-judaica) para se passar pelo antagonista. Ou seja, os fãs não viram o verdadeiro vilão sendo adaptado para os cinemas até a chegada de "Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis" — ou pelo menos não o viram com um estereótipo racista.

"Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis" traz dois diferentes pedidos de desculpas por parte da Marvel. O primeiro vem na forma dos próprios Dez Anéis, cujo uso desagradou muitos fãs em "Homem de Ferro 3". Em determinado momento do novo filme, Wenwu lembra como a reputação milenar de sua organização foi apropriada por um grupo norte-americano para causar terror nos Estados Unidos, exaltando o seu nome como sinônimo de medo.

'Mandarim', em 'Homem de Ferro 3', era um homem branco(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação 'Mandarim', em 'Homem de Ferro 3', era um homem branco

O segundo pedido tem raízes mais profundas: vem da forma como a Marvel costumava retratar seus personagens asiáticos. Na mesma cena em que referencia a produção de 2013, o pai de Shang-Chi critica o nome "Mandarim" e sua implicação racista e estereotipada, tal qual a imagem representada nos quadrinhos. Vale lembrar que não era incomum a figura do vilão asiático, conhecedor de algum estilo de arte marcial oculta, que até utilizava de trapaça para vencer o herói estadunidense. Essa herança vem ainda da Segunda Guerra Mundial, quando os japoneses, pertencentes ao Eixo, tinham uma imagem ainda mais negativa que o exército nazista após o minucioso e planejado ataque a Pearl harbor, na costa americana. Soma-se a isso uma dose de xenofobia, já que pouco importa, para o não-racializado, a origem de um povo: basta ter os olhos puxados para ser o "japa" — e com isso vem toda a carga de estereótipos, preconceitos e piadas ofensivas.

O presidente da Marvel Studios, Kevin Feige, tentou minimizar as críticas em uma entrevista com um jornalista chinês, insistindo que a narrativa é sobre Shang-Chi se reconectando com suas raízes. "Sua fuga é apresentada como um de seus fracassos", disse ele, de acordo com a revista Variety. De fato, o traje do herói é a mistura de referências do pai, da mãe e de sua vivência nos EUA, caracterizado pelo uso de seu Air Jordan. Mas esse "equilíbrio" de nacionalidades, tão bem representado por atores de ascendência asiática, não convenceu o maior mercado de filmes do mundo: a China.

Com todas essas questões, falando de um país tão rígido como a China, não é de se estranhar que o filme não possa ser exibido ao povo que ele retrata. Os Dez Anéis, o Mandarim e o próprio Shang-Chi nasceram e cresceram nesta cultura milenar e é um reflexo dela — mesmo que, às vezes, distorcido. Trazer uma origem épica, contratar atores e coreógrafos chineses e adequar o roteiro a possíveis censuras mostram o esforço da Disney em vender o produto ao maior mercado cinematográfico do mundo. Mas nada disso se torna útil quando se fala de interferência do Estado em produções culturais.

E se tem uma coisa que podemos aprender com a questão chinesa é a sombra da censura em produções aqui no Brasil. A demora do lançamento de "Marighella", provocada pela Agência Nacional de Cinema é a prova de que não estamos tão longe da China quanto achávamos. E, de fato, não estamos. Vivemos uma há poucas décadas. Quantos Shang-Chis perdemos ou ainda podemos perder?

Ator Simu Liu protagoniza o novo sucesso dos cinemas(Foto: divulgaçãç)
Foto: divulgaçãç Ator Simu Liu protagoniza o novo sucesso dos cinemas

Barrados na China

A China é uma república socialista dirigida por um único partido, o Partido Comunista da China. Economicamente, se identificam como socialismo de mercado: parte dos meios de produção são de propriedade pública, mas operados como economia de mercado. Politicamente, enquanto os controles econômicos e sociais têm sido muito enfraquecidos na China desde a década de 1970, a liberdade político ideológica é ainda bastante restrita.

A China possui uma das censuras mais rígidas do mundo. Os roteiros, sejam os produzidos no país ou importados, seguem uma rígida pré-aprovação e, como não possui sistema de classificação etária, todos devem ser adequados a diferentes idades. Mesmo os filmes da Disney, conhecidos por aqui por serem "infantis", podem parecer que incitam algum tipo de revolução política, sexualidade não hegemônica, uso de drogas ou violência inadequada.

"Shang-Chi" não é o primeiro filme da Disney que traz desconforto com o governo chinês. Os créditos finais do live action "Mulan" (2020) contêm agradecimentos a agências na região autônoma de Xinjiang, onde o filme foi gravado. Lá, o governo chinês tem efetuado prisões e esterilização em massa de membros de minoria muçulmana. E para piorar, críticas apontavam para uma certa incompreensão da cultura chinesa. Segundo o Global Times, "o filme foi rejeitado devido à sua representação hipócrita, que falhou em ressoar com o público chinês".

Até o fechamento desta análise, não há previsão de distribuição de Shang-Chi na China. A decisão de não distribuir o filme não é permanente, mas o atraso no lançamento afeta tanto os números de bilheterias e reproduções no streaming — ainda mais para uma empresa que produz filmes para gerar lucros. O mercado chinês teve o maior faturamento no mundo em 2020, arrecadando quase US$ 2 bilhões e vencendo os EUA. Também é o segundo maior para o Marvel Studios, atrás apenas da terra do Tio Sam e Canadá. Isso aumenta as chances do filme ser pirateado, mesmo na China, onde não é possível acessar algumas redes sociais do ocidente.

Outra polêmica entre a China e filmes da Marvel envolve Chloé Zhao, diretora de "Eternos", que estreou no dia 4 de novembro no Brasil. O filme da responsável por "Nomadland" (2020) também ainda não foi lançado no país, pois a cineasta se referiu à terra natal como "um lugar onde há mentiras por toda parte," e foi censurada na internet e redes sociais, conforme noticiou o The New York Times.

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